Palavras no Limite.

VORONOVSKY Diana


Nas últimas tramas da obra lacaniana, os aportes da lingüistica que fundaram o solo conceitual da teoria deixam seu lugar à topologia, à lógica e à poética, dando lugar à poeticidade, é dizer, ali onde algo é tomado na própria referência à linguagem.

Ao considerar a estrutura de O inconsciente, homólogo à estrutura de uma linguagem, as considerações seguintes se centrarão nesta "estrutura de uma linguagem".

Lacan põe em uso uma língua elástica, uma hablaje*, distinguindo que, se para a lingüistica o sistema fonemático serve de matriz a uma língua, isso não é o mesmo que uma língua consoar com outra, em um tipo de equívoco particular.

A linguagem pertence ao geral, e para que seja singular, deve desdobrar-se nos efeitos da linguagem que chama hablaje, que distingue-se da comunicação e está longe de toda expressão, é distinguível da linguagem, objeto da lingüistica, que se cumpre ao deixar de lado os fenômenos de resto.Gera uma língua nova "quando se gera uma língua nova podemos dizer que há metalíngua, não metalinguagem, ou também um embrião de metalíngua[...]".(1)

Como é que a linguagem, ao desdobrar-se nos efeitos da linguagem, advém alíngua?

A linguagem para advir alíngua se apoia na materialidade da voz e nas estreitas relações do som com o corpo.

Assim, a palavra é convertida em um meio com o que se opera, em nossa praxis, em condições que definem sua singularidade, já que alíngua como A mulher não se presta a nenhuma generalização. Singularidade que a faz não - toda ao mesmo tempo que reconhece seu estatuto de Real, como nos indica a impossibilidade que se escreve de seu lado. É por isso que alíngua de cada análise exime o analista de uma lucubração, resultado da contradição totalizadora da lógica dialética. Homonímia e polissemia próprias do deslizamento metafórico da cadeia.

Limitando a metáfora, usufruindo da condição partitiva da língua: a partir da língua mãe quebra-se a língua e criam-se línguas parciais, decomposição que introduz o estranho no familiar.

Assim, a impossibilidade da relação sexual está engendrada no parlêtre: por esse mesmo fato de ser parlêtre é o escrito que fará a diferença. É preciso uma palavra, como por exemplo, a palavra-valise. Graças a sua homofonia, requer da letra - várias palavras em uma. Tais palavras são compostas de modo que utilizando o liame homofônico entre elas conformam semsentido/s. Elas se fundam em uma síntese disjuntiva e ramificam a série nas quais se enxertam. Nos autorizamos assim, em uma direção para voltar a ler autrement lire, ou fazer faltar de outro modo, para ler de outra maneira: "O analista forma parte do conceito de inconsciente", é preciso dizer de outra maneira. Nos valemos da utilização da negação nas fórmulas da sexuação, já que Lacan dá aí um passo a mais, que situa um avanço em uma lógica que não é a da oposição fálico – castração e abre uma via para considerar outro estatuto para a palavra e sua função na praxis.

Assim, sustentamos que não é o analista o que forma parte do conceito de inconsciente, já que formar parte é fazer sua parte. É o que há do analista cada vez que, com seu dizer, existe ao dito. Parafraseiando a Lacan nós poderiamos dizer que encontramos a eficácia da negação que situa uma ausência como fato do discurso.(2) Isto é o que, ao subtrair-se, paralisa o sentido consagrado. Eficácia da negação enquanto põe em ato uma forclusão, não psicotizante, na série significante.

Um descompletamento, na própria palavra, que paralisa o sentido que situamos com Lacan entre I(imaginário) e S(simbólico). Dizer de outra maneira que a transferência é seu efeito. "As palavras fazem corpo e isso é o Inconsciente", dirá Lacan no final. E nossa prática é, diz ele: "aproximar como operam umas palavras".(3) As palavras fazem-corpo - corpo de letras - por isso as mot são no limite já que fazem nó, ao modo da pulsão. Mots em sua dimensão fônica e não de estrutura (parole).

Aquilo do corpo que Saussure despreza é reintroduzido nas mots, rotas, desprezadas, restos de palavras mas subtraídas do jogo de palavras, fora da série, palavras únicas, irrepetíveis, palavras insubstituíveis: "para poder desfazer pela palavra o que foi feito pela palavra".(4)

Fazer faltar de outro modo, não sem o semblante, função de diferenciar letras, para que "algo da linguagem" ressoe no corpo. Algo, não-todo, alíngua.

São os efeitos de linguagem e sublinhamos o ‘s’ pois não se trata de um efeito unívoco, outro estatuto para a linguagem que não toma seu ponto de partida no Outro, já que isso quer dizer que não há metalinguagem. Efeitos de linguagem, são distinguidos um a um, substituindo a polissemia do significante que aceita os jogos de palavras, que a escanção universaliza.(5)

O distinguimos do singular "efeito de linguagem" que é apresentado em Posição do inconsciente como o primeiro movimento "em que consiste o fading constituinte da identificação do sujeito no qual a causa do significante o divide". Nesse texto em particular, efeitos de linguagem deixam notar a descontinuidade do tecido do inconsciente, que por ser da letra, é por troços que alcança algo do real, escritura dissociada da fala com estatuto e função distinta. Letra no real, por seu valor de fonetização, e na translíngua.

Efeitos, no plural, o situamos como o segundo movimento de separação, corte, mas não do sujeito consigo mesmo, senão com o Campo do Outro que não, por inexistência, é ineficaz. Pulsão- enquanto limite- porque separare é tanto engendrar-se a si mesmo, como trazer algo novo ao mundo.

Se alíngua é uma por uma é porque sua condição é a auto referência da linguagem, pelo que a análise conduzirá ao nonsensical que nos constitui já que do que se trata é chegar ao ausentido, porque fazer poesia não é fazer o verso. É escritura poética, não poesia fazedora do belo ou do feio, senão pelo procedimento que a caracteriza, versão Real do buraco em seu troumatismo,* de buraco Real, no simbólico, traumatismo do buraco, uma mudança de letra troca o sentido, efeito de buraco que esburaca o sentido. "O inconsciente são palavras"(6) que são no limite, inconscientes, não sem o gozo que estas sofrem. Palavras no limite, quer dizer que algo deve ser retirado, posto de lado, para efetuar-se em posição de limite. Algo deve ser retirado das próprias palavras, desarticuladas como tais, desfiadas.

Palavras hors-sens, corte de sentido que convida à invenção e ao significante que Lacan chama novo, e que se distinguem daqueles recebidos do Outro, e que a intervenção do analista tentará reduzir, (não sem servir-se do Imaginário - Simbólico). Significante novo, e não novo significante, não algo a reencontrar, re-soar, senão algo que soa pela primeira vez. Assim, entendemos que se abre uma via para que o mais além do que foi dito, faça uma interpretação, como um dizer que admite a inexistência do Outro.

A palavra rota, desfiada, alberga o unheimlich já que ao introduzir o som coloca o elemento fônico como a matéria viva da linguagem. A condição para escorrer o sentido, que situamos entre I (imaginário) e S (simbólico), é a mortificação, estropiamento da palavra, que longe de sacrificá-la, a dignifica elevando-a à condição de alíngua. Assim o gozo se deposita em alíngua por um real que possibilita uma passagem do referencial da linguagem ao auto referencial de alíngua.

A economia do gozo dá sua entrada ao sexual de alíngua, separando domínios que nada tem que ver. O quê da linguagem ressoa no corpo hierarquizando o som, não do significante que se modula na voz, senão os tons, entonações diferenciadas e timbre que por meio da voz serão eficazes entradas do real na praxis.

Si "os psicanalistas formam parte do conceito do inconsciente, posto que constituem aquilo aos que este se dirige [...]".(7)

Nossa leitura tenta dar conta desta mútua implicação pondo em jogo o fazer -ao formar parte- alíngua em sua escuta e a transferência como seu efeito, sempre e quando outra coisa se escute.

A fonetização da letra violenta a identidade dos fonemas. Este é um privilégio da pulsão invocante já que a voz como seu objeto, se define por uma alternância que é sua estrutura mesma. Assim, a intervenção do analista por meio do som aturde o poder adormecido do significante, abrindo a via do Real.

O analista "faz", ao formar parte do conceito do inconsciente, a alíngua, tanto pondo limite às palavras como fazendo uso das palavras em seu limite, a transferência será seu resultado.

Referências bibliográficas.

  1. J. Lacan, Séminaire "L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre", 24, clase inédita.
  2. J. Lacan, "L’ Étourdit", Escansión: 1, Paidós, Argentina, 1984.
  3. J. Lacan, "Propos sur l’histérie", Petits écrits et conferences, 26/2/77.
  4. J. Lacan, Séminaire "Le moment de conclure", 25, clase inédita.
  5. R. Harari, "Invención poética %Ê Invención psicoanalítica", Polifonias. Del arte en psicoanálisis, del Serbal, Barcelona, 1998, p. 95.
  6. J. Lacan, "Propos sur l’histérie", Petits écrits et conferences, 26/2/77.
  7. J. Lacan, "Posición de lo inconsciente", Escritos II, Siglo XXI, México, 1966.