Duma alienação possível do corpo (real) em favor do rasgo unario

SZMIDT Sylvia


Inaugurado o novo milênio irrompe no mundo a notícia de que o mapa genético teria sido decifrado quase em sua totalidade, com a projeção de que a ciência poderia operar corrigindo um defeito na sequência dos nucleótides (bases químicas), ja que esta desordem tería como consequência alterar a função específica desse gen. Quer dizer, uma composição defeituosa determinaría que a proteina codificada por êle, ou não se desenvolva, ou se desenvolva erradamente e produza quaisquer tipos de deficiências.

Sabemos, assim mesmo, que as células possuem um mecanismo intrínseco denominado Apopse, que é uma morte celular programada que se produz por causas internas. Estes genes encontram-se distribuidos nas células somáticas dos organismos multicelulares, tem se descrevido que há um gen que ativa a morte (ICE) e um gen que inibe-a (BCL2).

O cáncer sería uma consequencia da falha dêste mecanismo provocando a proliferação e supervivência de células que lesam o organismo.

A continuação passarei a relatar trechos de dois casos clínicos que guardam alguma conexão com o cáncer e que tem me levado a reflexão. O primeiro trata-se de uma paciente de cinquenta e seis anos, Betty, que consulta para que eu autorize seu terceiro implante de mamas, após dois fracassos, já que seu médico exige para realizá-lo, uma autorização psicológica como condição para a cirurgía. Faz alguns anos a paciente cuida atenciosamente de sua mãe em seu leito de doente, quem sofre de metástase generalizada após de que anos antes foram-lhe extirpadas suas mamas por causa do cáncer.

Num instante terminal dêsta convalescência, sendo atraída por um ronquido diferente Betty aproxima-se da doente, a quem descreve como sublime, e pronuncia: - "mamãe, sou eu, chiquita". Relata que sua mãe responde a estas palavras com um suspiro que foi seu último hálito, quero ressaltar que a paciente descreve esta cena com doçura, num tom etéreo como se houvesse expirado esse hálito num momento atemporal de embriaguez aplacadora.

"(o apelido de Betty no entorno familiar é chiquita)".

A paz de Betty rápidamente é abalada sob a suspeita de que sua displasia podería se transformar em cáncer se suas mamas não são amputadas.

 

Consegue em suas longas peregrinagens hospitalares, convencer um cirurgião a fazer a tão desejada extirpação com o consequente implante de postiços. Falhando estes por rejeição, tempo após a paciente inicia uma ação legal contra a entidade fornecedora da prótese aduzindo que a rejeição é consequência de um desajuste na medida, tería segundo a paciente um desacordo entre os postiços (nome-envelope) e sua capacidade para conté-los. Dizia: - "...eram muito grandes..."

Sem dúvida esta identificação ao outro não achava lugar de sujeito suficiente para albergar algúm nome.

Betty continuará tentando, têm no seu bairro, dentro de sua comunidade, a função de boa samaritana a quem se procura quando algúm membro requer hospitalização, cuidados intensivos. Diz:-"...um doente deve ser assistido até as últimas consequências...", com certeza Betty supõe que nêsse instante de interrupção biológica podería acontecer o início de um lugar que permitisse contar-se a si mesma, mas isso não acontece com a morte de um semelhante. De qualquer jeito Betty sabe da inauguração de um sujeito pelo significante e do exilio a um não ser pela impossibilidade de significarse a si mesmo, este tránsito é o que nossa paciente nos coloca em ato de maneira exemplar.

Outra paciente com a que mantenho algumas entrevistas era encaminhada pelo serviço de ginecología porque consultava compulsivamente para que lhe fosse extirpado o útero, porque pressentia que ia desenvolver um cáncer, em suas palavras:-"se eu fôr esvaziada...pronto, fico tranquila...".

Relata que lhe foi realizada uma conização de colo de útero por causa de um HPV sem atendimento, por uma falta de advertência de que necessitava tratamento precisamente quando consulta ginecológicamente interrogada porque não pode ser mãe. Nessa ocasião afirmam-lhe que pode ser mãe em qualquer momento, quando tento determinar no tempo estes fatos diz que seu filho tem cinco anos e meio e que a conização fora feita fazia quatro anos atrás.

Relata que sua mãe havia perdido seis gravidezes prévias a seu nacimento. Quando peço para falar de sua mãe não pode fazé-lo afirmando que tudo o que têm de bom e de ruim é de seu pai, insisto sobre o particular e superficialmente a descreve quase imóvel e cega jogada na cozinha, vítima de diabete, quase um despojo humano. Tudo o que ela não é. Só que seu filho, quem na atualidade assiste a uma escola de período integral, diagnosticado e medicado por hiperkinese passa grande parte do dia nessa escola e no seu lar, pelas noites, o menino sofre de insônia e ela fica com êle tentando acalma-lo, de con-télo.

É imperativo resgatar dêstas apresentações que ambas pacientes falam de ser mães, nominações e a continuação desenvolvem a idea de que querem ser "esvaziadas".

Diz Lacan no seminario dos quatro conceitos, o Outro é o lugar onde sitúa-se a corrente do significante, é o campo desse ser vivente onde o sujeito tem que aparecer. O advento de um sujeito a seu proprio ser pela via do significante está primeiro no campo do Outro.

Se todo signo representa algo para alguém o significante representa um sujeito para outro significante. O significante unario, o primeiro, surge no campo do outro (alienação), o segundo tem como efeito a afanise, quer dizer a divisão do sujeito. Por meio da separação, o sujeito encontra o ponto fraco do casal primitivo da articulação significante ja que em essência é alienante. No intervalo, entre estes dois significantes instala-se o desejo que se oferece à localização do sujeito na experiência do discurso do Outro.

? Pode o cáncer ser pensado como a instância da letra no campo do corpo na procura desse espaço para a instalação do sujeito?