De que avanço se trata?

TOURINHO SARMENTO Regina


suporte da teoria e da prática psicanalítica, o inconsciente, na sua dimensão de inatingível, nos coloca permanentemente a questão dos avanços teóricos que se desenvolvem em torno dele.
Freud instituiu o conceito de inconsciente. Definiu seu estatuto principalmente em três obras: A Interpretação dos Sonhos; A Psicopatologia da Vida Cotidiana; Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente. Afirmou que o sonho era a via régia para o inconsciente. (1)
Lacan retornou a Freud. Pode lê-lo com outras ferramentas. A lingüística deu-lhe novo compasso e ele recuperou em Freud a dimensão do inconsciente estruturado como uma linguagem. Afirmou que o chiste era a melhor entrada para o estudo das formações do inconsciente, da função do significante no inconsciente. (2)
Seguir o caminho do sonho ou entrar pela porta do chiste, para onde seremos conduzidos? O sonho nos coloca frente a um enigma. O sonho é um rébus, nos disse Freud(3). O chiste está na forma, na verbalização que o exprime, relaciona-se ao jogo de palavras, à liberação do non-sense, nos disse também Freud(4). O chiste nos coloca diante de uma palavra deslocada, uma palavra que se apresenta com seu sentido esvaziado, pronta para receber outro. Ele nos coloca diante de uma palavra que nos surpreende. A possibilidade de surpresa é indicativa do inconsciente. Surpreender-se com o inesperado, com o incompreensível, com o enigmático, o ininteligível é o efeito de um encontro com o inacessível. (5)
Alain Didier-Weill, no seu livro Os Três Tempos da Lei, trabalha, minuciosamente, a questão do espanto, da sideração - Verblüffung - ligada ao dito espirituoso, o chiste.
Seguindo por estes caminhos do sonho, do chiste, do espanto e, tomando como roteiro maior a questão dos avanços teóricos em torno do conceito de inconsciente, retiro do texto de Didier-Weill o seguinte parágrafo:
"Assim com a questão da Verblüffung, Freud descobre a função de um significante que tem o poder de introduzir no discurso uma ruptura que se oferece ao sujeito como um apelo injuntiivo para que mude de discurso, para que passe, usando esta contribuição fundamental de Lacan, do discurso universitário - ao qual estamos todos habituados- ao discurso analítico. ( 6)
O apelo é portanto para que seja possível uma entrega, ainda que momentânea, ao espanto ao despojamento de sentido, ao novo.
Essa ruptura introduzida no discurso, esse desconcerto descoberto por Freud desde o seu trabalho sobre os sonhos, é para Didier-Weill a escansão, tão ressaltada por Lacan. E aí, ele destaca que Freud recuou, não introduziu na clínica essa ruptura descoberta como efeito da produção inconsciente.(7) O que a ruptura do discurso, e também a ruptura enquanto escansão podem evidenciar é uma presença de um saber novo. Há o que não se sabe ainda, e, ou tampona-se essa interrupção com o "já sabido" ou permite-se o advento de "um não saber ainda". (8)
O chiste é a via privilegiada através da qual pode-se perceber como esse inesperado irrompe, instala um instante de surpresa frente ao não sabido e em seguida permite que apareça um novo saber. Do não sentido surge um novo sentido. O chiste não permite recuar. A produção do chiste implica, enquanto formação do inconsciente, em abandonar o já sabido, o saber constituído, para que chegue o que ainda não era sabido, esse saber inconsciente que é o que provoca mudança.
O inconsciente, nessa perspectiva de um saber que ainda não se sabe, tomado como guia dos avanços teóricos da psicanálise, promove uma forma particular de lidar com essa teoria. Se o inconsciente é essa possibilidade de espanto, é a possibilidade de deixar-se abandonar por um não sentido que desembocará em sentido novo, isso tem conseqüências efetivas na teoria psicanalítica. Que há avanços, isto é inegável. A teoria se desenvolve, se complementa, os pontos embaraçosos, os retornos levam a desenvolvimentos. Na própria teoria freudiana é possível identificar modificações na maneira de enfocar o inconsciente. A metapsicologia, bem como a chamada segunda tópica, por exemplo, introduzem novos pontos de mira, preocupações distintas na busca da precisão do conceito, diferentes dos encontrados nos textos escritos em torno de 1900. No entanto, o inconsciente como o inapreensível, o insistente, o que desafia traz em si a impossibilidade de um avanço até um ponto de chegada. O enigma do sonho, o tropeço do lapso, o inesperado do chiste estão sempre a mostrar, fugazmente, a existência de um outro saber que nos surpreende, que por mais que seja perseguido, que se avance sobre ele, por seu lado ele sempre avança e, como num pulo de gato, nos surpreende.
Lacan incluiu a ruptura do discurso na sessão analítica, portanto no tratamento, através da escansão, do corte. Incluir essa ruptura na teoria analítica foi também um esforço que o acompanhou ao longo de seu ensino. Nos Escritos ele diz procurar escrever num estilo próximo ao que ele crê ser o do inconsciente. A topologia se lhe afigurou como uma possibilidade de mostrar como o inconsciente também se mostra.
Não perder de vista essa perspectiva, considerar efetivamente o modelo que o chiste nos fornece é o avanço que pode sempre colocar uma teoria em movimento. É nesse sentido, e aqui vamos nos aproveitar de um dos recursos utilizados pelo chiste - a homofonia - que podemos pensar a passagem do Unbewusste freudiano para o l'une bévue lacaniano.

  1. Freud, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos, Ed. Standard Bras. das Obras Completas, RJ, Imago, 1977
  2. Lacan, Jacques. O Seminário, livro 5, As Formações do Inconsciente, RJ. Jorge Zahar Editor, 1999
  3. Freud, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos, Ed. S.B, das Obras Completas, RJ. Imago, 1977
  4. Freud, Sigmund. Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente, Ed. S. B. das OC. RJ, Imago 1977
  5. Didier-Weill, Alain - Os Três Tempos da Lei, RJ, Jorge Zahar Ed.1997
  6. Didier-Weill, Alain op. cit.
  7. Didier Weill op. cit.
  8. Didier-Weill op. cit.