"O avanço lacaniano…" : ein Bildungsroman?

PERLES Thierry


Em quê o percurso exemplar de Lacan em direção a Freud nos dá à ler e à ouvir as condições muitas vezes dramáticas do retorno de uma memória que a história havia estagnado? Recusemos de início o que o termo de avanço comporta de hagiografia e de provocação positivista. Ou então que se faça dele um romance : nesse caso, sugiro o modelo de Monsieur Dumolet au Mont Blanc (de Samivel(1) ). Ou então que se atribua esse tropo do avanço à lógica fóbica à qual ele se refere: lógica da vacilação do recurso chamado en reforço diante do que avança. Dentro dessa ótica, deve-se também considerar a fobia dos psicanalistas lacanianos diante de Lacan.

O percurso freudiano se fundamenta na tradição já solidamente estabelecida do trágico. Os psicanalistas retiveram dela a idéia da perda do objeto, o que é aproximativo, para indicar o espanto do homem, levado somente a entrever o sentido que se deduz de seus atos (o que se revela : ato falho, diz-se). Pois talvez ele não esteja perdido para todo mundo, para o Outro por exemplo : o objeto é menos perdido que indicativo de um Outro Lugar, do qual se diz um tanto precipitadamente que é do objeto que ele revela a perda.
Ora, não era surpresa, no tempo de Freud, que o realização (do desejo) fosse completamente diferente de um desabrochar.
O objeto é parcial, como se diz também com certo humor (a questão do fragmento sendo comum tanto à cultura barroca como à psicanálise, da qual ela constitue a trama - o sexual freudiano).

Os avanços … : somos obrigados aqui a relativizar um pouco. Freud avançava sobre um terreno onde, ao mesmo tempo, alguma coisa avançava em sua direção/na direção de seu nós coletivo. O coletivo, a saber que os ideais ditos platônicos, vida harmoniosa e Bem soberano - a riqueza do sentimento que a Renascença tinha da vida - haviam traçado um longo caminho. O homem não é mais à medida de todas as coisas, porque temos que sucumbir à evidência de que não é a medida que o caracterisa. Assim, a tradução ideológica, teórico-jurídico-política efetiva e concreta não deveria tardar : a vez é dada à expressão dessas formas retardadoras da transcendência. L'Herrschaft, a ditadura, é a primeira dessas formas, o que aliás Freud encontra bastante cedo, desde a Traumdeutung (2). A questão é : à quem daremos o poder? Aqui as Lumières capitulam : existe e existirá sempre a sombra trazida pela luz, nunca houve paisagem banhada de luz e sim de linguagem. Isso retorna na língua, como uma outra linguagem. É o sexual, sempre muito próximo do infantil, que entretanto aponta mais ou menos para uma lubricidade estranha do mundo. Na verdade, o que se evidencia é que não é tanto a experiência (ou como exprimiu Freud, a prova) da satisfação que se trata de encontrar, mas o resquício, o que ficou dela como uma marca.
Desse desvio pelo traço de onde se apela ao Outro, vai se discutir longamente para saber se ele é lacaniano ou se ele já existe em Freud. A meu ver, a resposta não deixa nenhuma dúvida : está claro que a escritura de Freud estava à espera de ser lida. Compreenda-se : a leitura é uma iniciativa fractal.
O que se pode dizer do avanço de Lacan : nós sabemos que Lacan propõe que se leia sua trajetória sob a bandeira de um retorno a Freud. Que assim seja. E além disso? Nada, senão essa questão, verdadeiro fio condutor de seu ensino : de saber onde Freud parou. Ora, será que não podemos trabalhar essa parada de mil maneiras e para começar como Lacan mesmo o fez, nessa via do retorno no qual ele se lança? Através dessa parada, Lacan também quer dizer a nossa, o nosso embaraço de chegar a apenas formular a primeira posição, a questão original que trabalha Freud. Lacan, porque ele o diz em vez de calar-se.

O recuo do escathon cristão leva à Reforma. A concepção do pai para Freud supõe um tal recuo da esperança. O que Lacan mostra no Seminário a Ética de 13 de janeiro de 1960, ao preço de uma desinterpretação, quando ele pede que seja reconhecida "a filiação ou a parternidade cultural que existia entre Freud e uma certa virada do pensamento…". Aquela altura, o retorno a Freud ainda não havia atingido o avanço freudiano. O que Lacan aproxima dando uma abordagem dentro da história do pensamento, Freud inicia praticando uma brecha no interior da tese luterana : é a história e não a natureza que o sujeito encontra na língua que ele fala. Não existe esperança que não deva se articular aos efeitos do retorno do recalcado. A hipótese do inconsciente é o enigma através do qual Freud dá primasia a consideração do tempo histórico, arraigado a sua obstinação judaica. Se o eco dessa questão mal chega até nossos dias, é que a shoah se interpõe entre Freud e nós, como uma realização no real abolindo de forma duradoura até mesmo os traços da existência de uma tal temporalidade subjetiva.

Mas não é somente o retorno a Freud que se deve levar em conta nos termos desse questionamento sobre o avanço e o recuo. Aproveitando da nossa sideração para pensá-lo, o tempo da História não cessa de depositar seus germes catastróficos no seio da transmissão. Essa sideração é o preço de um recuo, quando se trata da psicanálise. Ora, foi graças a sensibilidade de um Lacan, à sua atenção as modalidades estupefiantes do retorno de uma memória estagnada, segundo uma lógica cujo poder cativante se iguala ao do inconsciente, que a psicanálise reencontrou as vias na qual seu fundador a inscreveu. De onde quer que venhamos hoje, deparamo-nos com essa memória estagnada pelo que o nazismo veio aí depositar e cujos efeitos se fazem sentir sobre a marcha do progresso.
Leiamos o artigo sobre o Tempo lógico como ponto de referência das condições necessárias a um tal retorno : veremos então que essas condições articulam a transposição do tempo da História : o coletivo não é nada mais que o sujeito do individual (3)

Na verdade, Lacan não havia, ele mesmo esboçado o tema do avanço ?
"(…) é articulando de maneira precisa esse a ao ponto de carência do Outro, que é também o ponto onde o sujeito recebe desse Outro, como lugar da palavra, sua marca fundamental, a marca do traço unário, aquele distingue nosso sujeito (…) como um sujeito inteiramente ligado ao significante enquanto que esse significante é o ponto de virada de sua rejeição, da rejeição do sujeito mesmo, (…)que vemos como a um momento tudo recua, tudo se apaga na função significante diante do aumento, irrupção desse objeto.
Ai está o ponto em direção ao qual podemos avançar, ainda que seja a zona mais velada, a mais difícil a articular de nossa experiência.
(…) toda uma parte da elucidação analítica, em suma : toda a história do pai em Freud (representa) nossa contribuição essencial à função de Theo num certo terreno (…) que se revela não ser totalmente reduzido, nem redutível porque nós nos ocupamos da mesma forma, com o porém que desde há algum tempo nós perdemos, se assim se dizer, a alma, o sumo e o essencial. Não sabemos muito bem o que dizer, esse pai parece se assimilar numa nebulosa, cada vez mais recuada, e ao mesmo tempo deixar singularmente em suspenso a dimensão de nossa prática".

"Que exista aí um certo correlativo histórico, não é demasiado que o evoquemos quando se trata de definir de que devemos tratar na nossa área : creio que é chegada a hora. É chegada a hora porque um certo setor aparece na evolução de nossa prática, de mil formas já concretizadas - articuladas, clínicas e ligadas a prática - distinto da relação ao Outro, grande Outro, como fundamental, como estruturante de toda a experiência cujos fundamentos encontramos no inconsciente (…) aquela sem a qual vagamos, quer dizer, aquela sem a qual nós voltamos como um recuo, uma abdicação ao que foi a ética da era teológica, essa cujas origens eu lhes fiz sentir, guardando certamente todo o seu preço, todo o seu valor, nesse frescor original que os diálogos de Platão lhes conservaram.
Seminário A identificação, 13 de junho de 1962


Cartels Constituants de l'Analyse Freudienne
Psychanalyse Actuelle

 

  1. Para o autor destas linhas, a simples lembrança do nome de Samivel como a abertura para um distúrbio de memória/ uma lembrança de infância no Mont Blanc. O que é um nome próprio? Eis uma questão pertinente aqui. Para Samivel, me vem à cabeça, depois de uma saudação - salvus, salve (me) - ao tio sam: sam'lévi. Samivel, era Paul Gayet-Tancrède.
  2. …und die Psychotherapie kann keinen anderen Weg anschlagen, als des Ubw der Herrschaft des Vbw zu unterwerfen (Sigmund Freud, Die Traumdeutung, capítulo VII). [… e a psicoterapia não pode tomar outra via que de submeter o Inconsciente à ditadura do Pre-consciente).
  3. Essa é a última palavra do artigo.