A LÓGICA DA DISPARIDADE SUBJETIVA MOURAO Arlete Os avanços lacanianos do inconsciente freudiano nos permitem considerar uma outra lógica para o laço social, que não a da Massenpsychologie. No caso do laço social entre analistas, quais as implicações de uma tal lógica para a transmissão da psicanálise ? Minha tese é a de que essa lógica pode ser pensada em termos de uma disparidade subjetiva que decorre da própria lógica do inconsciente - do inconsciente estruturado como linguagem. Esta perspectiva recoloca em cena, tanto no laço social quanto na transmissão, a dimensão da transferência. Entretanto, trata-se aqui da transferência tomada em sua natureza específica de abertura do inconsciente, que é a transferência resgatada pelo redimensionamento lacaniano do inconsciente em função da linguagem. Este redimensionamento, ao colocar o inconsciente no campo do discurso, faz com que a transferência deixe de ser, exclusivamente, uma condição de vínculo entre analista e analisando - fechamento do inconsciente - e passe a ser considerada também em sua especificidade mais primitiva, ou seja, a de Entstellung - transposição entre significantes, pontuada por Freud, ou ainda, presentificação da esquize do sujeito. Trata-se pois de uma transferência que, por si só, faz objeção à inter-subjetividade. Uma lógica de disparidade subjetiva também é convocada
a partir de uma outra perspectiva delimitada pela acepção
do inconsciente estruturado como linguagem, que é a da não
existência da relação sexual. Aqui, o que se introduz
tanto nos laços quanto na transmissão é sua dialetização
nessa dimensão de impossibilidade e/ou inexistência. Esta colocação pode ser lida de duas formas. Uma delas é pensar a análise e seu fim, em três tempos lógicos: um momento no qual a pulsão ainda está colada ao discurso do Outro (SsS) - tempo da identificação; um outro tempo onde a pulsão se descola do SsS e fica como resto de uma operação metaforizada no significante Nome-do-Pai - tempo de passagem de analisando à analista; e um momento onde o sujeito, pela queda do Outro, que não lhe dá mais garantias, só pode re-intrincar a pulsão, reintegrando-a ao seu próprio discurso - tempo de efeitos de transmissão. Uma outra leitura seria pensar que se a identificação se ancora no campo da demanda, a presentificação da pulsão convoca a vertente do desejo, cujo objeto que o causa deixa de ser colado ao Outro. Aqui, o Outro do desejo passa a subsistir exlusivamente pela alteridade dos significantes - desfiladeiros nos quais a pulsão vem ancorar-se. Assim, a economia do desejo fica marcada por uma relação de transferência à palavra - ao Outro da palavra, ou seja, onde se poderia dizer que a referência - e não a identificação - passa a ser com o Outro do significante - o Outro que, em si, ex-siste - e não mais com os significantes do Outro - tomado aqui como um Outro existente, encarnável. Essas duas leituras, além de nos permitirem considerar a experiência como uma experiência de percurso de transferência, ao delimitarem uma implicação lógica para além do campo das identificações - ou seja, para a lógica da disparidade subjetiva, que seria a versão "subjetivada" da lógica do significante - nos ajudam a avançar um pouco mais no esclarecimento de uma ética que rege nossos laços sociais e a transmissão da psicanálise. Uma tal ética só pode dizer respeito às implicações e incidências da destituição subjetiva nesses movimentos da extensão. Em outras palavras trata-se de apreendermos quais os efeitos desse sujeito "separado na experiência". Uma vez que tais efeitos referem-se a um saber que desliza incessantemente sob os significantes, pode-se dizer que convocam, inevitavelmente, a in-ter-locuções. Regidas por uma lógica de disparidade subjetiva, a especificidade dessas in-ter-locuções é a de se estabelecer sobre um tipo de laço social onde o que enlaça são as diferenças, o que os coloca, inexoravelmemte, na categoria de "laços falhados". Isto é diferente de laços sociais que se baseiam em afinidades ou identificações, e também diferente de uma relação que poderia ser denominada "entre-pares". Numa perspectiva de destituição subjetiva, entre os pares, só há disparidade . Isso tem consequências para a transmissão, na medida em que, por basear-se numa in-ter-locução de diferenças num registro puramente significante, a vigência desses "laços falhados" condicionam, não falhas na transmissão, como muitas vezes se diz, mas a transmissão da falha. Abordadas desta forma, a transmissão e o laço social podem ser (re)vistos como assegurando a dimensão do desejo - em sua acepção de insatisfação e/ou impossibilidade , onde pode-se dizer que o que faz vínculo entre os analistas é determinado por uma geografia do desejo decorrente de uma geografia da transferência - transferência a um discurso, e não, exclusivamente, a um "mais um", ou a um mestre. Onde pode-se dizer também que laço social e transmissão referem-se à colocação em ato de uma transferência ao discurso analítico. É nessa dimensão que podemos considerar nossos "encontros", nossas "convergências", como sendo, de fato, "desencontros", "divergências", na medida em que são consequências estruturais de um enodamento a partir de nossas diferenças. Isto implica que, junto à lógica do comum, tenhamos enodada a lógica do um a um: enodamento do que nos diferencia. Finalizo esta considerações sintetizando-as na seguinte formulação: tal como o sustentar o "desejo do analista", o laço social entre analistas é um exercício de castração .Um exercício nesse registro pode ter efeitos de transmissão, na medida em que há aí uma produção de saber , que não se toma como verdade , mas reenvia ao não saber, à impotência, ao sem sentido. Tal reenvio sustenta-se numa lógica de disparidade subjetiva. |