TORÇÕES DO FEMININO E FUNÇÃO ANALÍTICA

MAURANO MELLO Denise


No seminário A transferência, lê-se que o amor tem relação com os deuses, e se os deuses estão no Real, então o amor tem relação como o Real. A transferência deve servir para interrogar o objeto para saber qual é o agalma, a preciosidade escondida que guarda em seu ventre, e que funciona para o sujeito como elemento de atração para o desejo. Entretanto, se o desejo caracteriza-se pela relação à falta, não é o objeto em si mesmo que é o mais importante, mas os traços que sua perda deixa
A transferência testemunha o que, na organização subjetiva do paciente, é comandado por esse objeto chamado pequeno a. Por conseqüência, a carga do " herói analista " é "de ter que interiorizar esse a, retê-lo em si, bom ou mau objeto, mas como objeto interno, e que é daí que surgiria toda a criatividade por onde deve restaurar, do sujeito, o acesso ao mundo." O "a de que se trata é, a saber, o objeto, absolutamente estrangeiro ao sujeito que nos fala, na medida em que ele é a causa de sua falta." Esse objeto estranho é o que se encontra no centro do que é designado como subjetividade.
No início do trabalho, o paciente supõe ao analista um saber sobre o que procura em si mesmo. Ao analista é creditada a posição de grande Outro, aquele que goza do saber e que é o assegurador da ordem das coisas. Mas como não há sujeito nesse grande Outro, ao termo da experiência analítica, o analista reduz-se a ser o guardião do lugar do objeto pequeno a, um objeto que tem por destino ser rejeitado. Para que isso aconteça, é preciso que o analista exponha-se a uma tal destituição. É essa dimensão de corte e de separação presentes na interpretação analítica, que caracteriza o essencial do que é nomeado ato psicanalítico.
Ainda sobre a questão do objeto a no seminário sobre O ato psicanalítico, Lacan faz uma observação fundamental a respeito da relação existente entre este e o ato trágico. Salienta que " tudo isso que é da ordem do sujeito está no nível de algo que tem esse caráter dividido que há entre o espectador e o coro ". E na lição seguinte acrescenta, " não confundimos a ficção trágica -...-, com o que é verdadeiramente uma aceitação, a 'única válida, fundada, da tragédia, à saber a representação da coisa. "
Vejo aí um alerta de que é preciso não se restringir ao mito. O mito tem sempre relação com o âmbito do sentido; é a tentativa de capturar o que está no Real incompreensível. A psicanálise não visa promover a inflação da relação do homem ao sentido, mas sim conduzi-lo num percurso de travessia do sentido. É preciso esgarçar o sentido onde se aloja a "espaçosa" subjetividade. Isso significa atravessar o fantasma que tenta fazer a conjugação do sujeito ao objeto. É preciso ir além do mito para tocar aquilo de que se trata na psicanálise. Ela não é absolutamente uma hermenêutica. É nessa medida que a dimensão do ato que compõe a representação trágica, exibe o sujeito enquanto fruto de uma divisão, divisão que se aloja no seio do campo do sentido.
Na operação analítica destaca-se o papel fundamental da ação do corte. Tem-se aí dois termos essenciais dessa operação: o laço da transferência, no qual vigora o apelo ao sentido, e o corte introduzido pela interpretação analítica, que em último termo, aponta o não-senso. Por essa via, o tratamento permite a localização da função do Nome-do-Pai nesse ponto onde essa função, responsável, como já vimos, pela regulação do sujeito a seu desejo, não teve possibilidade de se realizar. O Nome-do-Pai é justamente esse significante que no Outro, na alteridade, é o significante do Outro enquanto lugar da lei, do limite onde o sujeito encontra sua delimitação, sua nomeação. Finalmente, cabe ressaltar que a questão do sujeito diante do Outro não se resume a esse Outro como lugar da lei.
Na perspectiva mais radical o Outro remete ao que está além de toda regulação possível. A libido organiza-se tomando o phallus como símbolo. No entanto, por ora o que quero ressaltar aqui é a dimensão do Outro que ultrapassa a referência fálica. A inscrição fálica articula o gozo às leis do significante, mas a noção de gozo Outro proposta por Lacan, aponta um gozo fora da linguagem, fora do sexo, fora da possibilidade de ser apreendido por representações. É essa sinalização de um mais além do fálico que permite a Lacan sublinhar não a dualidade dos sexos, mas a dualidade de gozos.
Diante da limitação do gozo sexual, gozo fálico, dependente do órgão, esse gozo Outro coloca-se como visado. Esse gozo Outro, designado também como gozo feminino, não tem relação com a castração e conseqüentemente nem com a função do Nome-do-Pai. O que me interessa agora é a indicação de um paradoxo na cura analítica. Porque se o que é visado no trabalho analítico é o acionamento da função do Nome-do-Pai, a cura mesma pretende entretanto, levar o sujeito a poder dela se passar, ou melhor ainda, a poder ultrapassá-la, isto é, tocar esse registro que está para além do domínio do phallus. Isso implica um certo encaminhamento em direção ao Real, em direção à perda da esperança de suturar a falha no saber. É a indicação de Freud da inexistência de representação do sexo feminino no inconsciente que permitiu a Lacan qualificá-lo como Outro em relação ao phallus .
Assim esse Outro, A/ mulher, "só se pode escrever barrando esse A, esse artigo definido para designar o universal". Não há universalidade possível quando se trata de mulher. Ela situa-se no lugar do enigma absoluto, lugar de um buraco radical. Tanto para os homens, quanto para as mulheres, na dimensão empírica dessas, A/ mulher é o ponto mais extremo de toda análise. Toda análise, na medida do possível, conduz em direção a A/ mulher. Diria que esse é o ponto limite do sentido que está em uma relação de vizinhança com o Nada, ao qual chega o herói das tragédias, para ir até o fim com seu desejo.
Penso que por essa via pode-se ver o caráter topológico dessa abordagem do heterogêneo. Pode-se pensar não pelo antagonismo, mas na perspectiva do paradoxo. O pensamento trágico é este tipo de pensamento que acolhe a ausência do não no inconsciente. A meu ver isso dimensiona a grandeza do passo de Lacan para fora do cartesianismo, tanto em sua forma de ampliar a teoria e a clínica freudiana, como no estilo de sua transmissão.
Para concluir, deixo uma observação. Se levarmos mais adiante as idéias acima expostas, creio poder dizer que a falta de ênfase da racionalidade cartesiana no Brasil, e em contrapartida, um tipo de vocação de um pensamento que acolhe os contrários, nomeado como barroco, tem talvez possibilidade de explicar um pouco a maneira pela qual a psicanálise se expandiu nesse país com tamanha facilidade. Sabemos que a expressão mais característica do Brasil é a barroca. As comemorações dos quinhentos anos tem assinalado isso. No seminário Mais ainda, Lacan diz que a psicanálise é barroca. O trágico, o barroco, me parecem expressões estéticas onde opera uma ética que tem a mesma estrutura da ética da psicanálise. Em sua heterogeneidade em relação ao Clássico, não é à toa que o barroco está identificado ao feminino, a uma certa força da natureza, identificado no fim das contas, a um gozo Outro. Então aproveitemos desses elementos de monstração que vem da estética para a difícil transmissão da nossa ética.