LÓGICA ABSTINÊNCIA

MARINO Elisa


Já em outras oportunidades nos ocupou a questão que hoje retorna, a abstinência em relação à função do analista no seio do dispositivo analítico. Uma daquelas apresentações, foi chamada "A virtude do Psicanalísta". A abstinência era definida como a virtude que consiste em privar de satisfação os próprios apetites, seja total ou parcialmente, no entanto Aristóteles apresenta a vitude como o justo meio. Seria virtuosa aquela pessoa que permanece entre o mais e o menos na devida proporção.

Hoje retomaremos essa proporção desde outra perspectiva, mas que naquele tempo colocamos em relação com o texto freudiano que indica:

"... na medida do possível, a cura analítica deve ser realizada num estado de privação, de abstinência".

Um breve desvio. No livro dos sonhos, quando Freud aborda o trabalho de condensação, podem ser lidas, também, as questões referentes à medida e à proporção.

"... estritamente falando, a cota de condensação é indeterminável".

"Assim a desproporção entre conteúdo e pensamentos oníricos...".

Inquietude matemática, pela medida e a proporção presente no texto freudiano e retomada por Lacan, para formalizar a praxe analítica a partir de desenvolvimentos matemáticos posteriores que possibilitam fazer cálculos com cifras que não operam com totais.

Teorema de Godel, Infinito Cantoriano, séries de Fibonachi, número de Ouro, por nomear apenas alguns dos problemas que fazem questão aos lógicos e matemáticos, são colocados a trabalhar, no campo da psicanálise para dar estatuto lógico, no dizer de Freud.

No seminário XIV, depois de utilizar os recursos do pensamento matemático, Lacan não deixa de advertir que o uso desses meios sempre implica alguma parcialidade para a teoria. Não é necessário conhecer mais que o que tem de servir como instrumento.

Em "A Lógica do fantasma" é introduzido o número de Ouro para dar suporte matemático à apresentação topológica da repetição, em termo de duplo riço. A volta de uma traça sobre si mesma, lhe resulta apto para representar a operação freudiana da repetição. Os lugares que produzem cortes determinados em uma certa relação, permitem medir a incomensurabilidade. Lacan substitui assim as metáforas biológicas freudianas, de "Mais - Além do princípio de Prazer" em relação com a repetição, por uma metáfora nymérica.

À altura do seminário de referência (aula de 8 de março de 1967) Lacan não fala em termos de gozo mas de satisfação subjetiva (Befriedigung).

 

 

Depois de diferenciar:

Ato sexual

Acting

Ato analítico

Apresenta o ato sexual como aquele onde se produz a "ilusão" de eliminar o resto (que o leva a dizer "não há ato sexual" em paradoxo com "somente há ato sexual"). Recomenda para as atividades gozosas da vida o necessário de esquecer a regra de cálculo, não assim no que interessa à operação analítica.

A psicanálise como prática radical da linguagem é uma das poucas práticas discursivas onde a palabra é a medida do homem. O teorema de Pitágoras como antecedente dos números irracionais, marca a impossibilidade de medida comum, de relação armônica entre o número e o universo. A ausência de interstícios, ao representar os números racionais em uma reta, é apenas ilusória; ficará um número infinito de intervalos. Para os pitagóricos, isto supõe falha no universo. Armonizar essa falha foi realizado mediante o uso de proporções.

O que interessa a Lacan destes desenvolvimentos matemáticos é, fundamentalmente, a presença do incomensurável, o referente à lei de proporções serve para avançar seu ensino ao redor do objeto a. A castração implicará assim uma ordem de medida que Lacan exemplifica com o número de ouro.

Resulta interessante, na construção da proporção, o terceiro termo, que em tanto potencial, possibilita a existência do universal assegurando uma comparação que não seja analógica. Terceiro termo que restaura a proporção sem aceder a chear a ruptura (tanto produz furo como tenta o encontro). Interessa para o nosso campo, entanto proposição que não oferece complementariedade. Trata-se, então, de operar com proporções estabelecidas mediante o uso do incomensurável para não confundir comparação com analogia, deslocando a psicanálise de prática radical da linguagem para amera hermeneútica.

Na mesma ocasião Lacan fala de "analogias grosseiras entre pai e analista".

Não sem ironia, compara a cama, o leito, com o sofá do analista. Acredito que é fecunda a comparação não analógica entre estes dois termos e particularmente nas consequências referidas à satisfação subjetiva (Befriedigung). A cama analítica está em relação contrária com o ato sexual. Relação contrária, não contraditória, que o leva a estabelecer um desdobramento, não redobramento, do campo do Outro.

Outro na sua função de campo sexualizado- campo edípico.

Outro desexualizado, na sua função à verdade, no entanto é na experiência analítica onde a verdade faz intrução no campo do saber. Tata-se de transformar o sexual em conjunto vazio por uma operação lógica de abstinência. Portanto, apenas logicamente, já que toda realidade não se pode ser abordada senão em forma fantasmática, posso estabelecer pela lei de abstinência um campo desexualizado. A interpretação entanto corte, deverá operar na fronteira entre um campo sexualizado e outro desexualizado que possibilite a função de a.

A sugestão como logro da unidade, entanto ilusão de eliminar o resto, tal como foi dito do ato sexual, é uma das modalidades discursivas onde está presente o fracasso da "lógica abstinência".

Fracasso da "lógica abstinência" que talvez, nos termos do Seminário XVIII, possa ser pensado como fracasso no fazer semblante; não construção do semblante de objeto em sua função de fazer limite à totalização.

Poderíamos, agora, ampliar o título de estas notas: "ou Lógica abstinência ou discurso incestuoso".

Uma das possíveis vantagens de pensar outra vez a abstinência em termos lógicos é desmoralizar sua transmissão. Sempre e quando a lógica não seja levada a ideal, já que o destino do Ideal é causar repressão.

 

 

Elisa Marino

Letra, instituição Psicanalítica.

Setembro 2000