O PESADELO... A MASCARA DO REAL

HAGENBUCH Nancy


Os antigos reconheciam nos sonhos toda índole de coisas e, em ocasiões, mensagens dos Deuses? E porque haveriam de estar enganados? Alguma coisa faziam eles com essas mensagens dos deuses. A nós interessa a trama que envolve estas mensagens, a rede onde alguma coisa fica presa.

...o sujeito esta alí para dar consigo mesmo, onde isso estava, o real ...os deuses pertencem ao campo do real. Alí onde isso estava, o ich-o sujeito – havera de advir. E para saber que está-se alí não há mais que um método, detectar a rede.

Jacques Lacan

O pesadelo se apresenta como essa mensagem dos deuses ou dos demonios que enmascara o real.

Trabalhando sobre isto, encontro-me com um texto "As sete noites" de Jorge Luis Borges (poeta argentino,1899-1996). Nêle o poeta descreve o quadro do pintor Fussli chamado The Nightmare (o pesadelo) com as seguintes palavras: "Uma garota estava deitada. Acorda e apavora-se porque ve que sobre seu ventre está deitado um monstruo que é preto, pequeño e maligno. Esse monstruo é o pesadelo."

Nêste mesmo livro ele conta um de seus pesadelos mais terriveis. "Sempre sonho com labirintos ou com espelhos. No sonho do espelho aparece outra visão, outro terror das minhas noites que é a idea das máscaras. Sempre as máscaras me deram medo. Sem dúvida sentí na minha infancia que se alguem usava uma máscara estava escondendo algo horrível. Às vezes me vejo refletido no espelho, mas vejo-me refletido como uma máscara. Tenho medo de arrancar a máscara porque tenho medo de ver meu verdadeiro rosto, que imagino atroz. Aí pode estar a lepra ou o mal ou alguma coisa mais terrível que qualquer imaginação minha."

A captação do poeta da experiência do pesadelo marca o aterrorizante do que o pesadelo enmascara.

Jacques Lacan nomeia-a como essa máscara do real, essa cobertura, esse esconderijo do real que mais que outro dirige nossas atividades. Assim o pesadelo é experimentado como a satisfação do Outro e ilustra-a com a figura do incubé, esse ser maligno, esse ser que faz sentir todo seu estranho peso do gozo sobre seu peito, que nos esmaga baixo seu gozo.

No pesadelo aparece esse ser questionador que se estende nessa dimensão chamada enigma e questiona a demanda que é colocada em jogo.

É a partir de tomar a estrutura do pesadelo como um ser questionador que se oferece como enigma à demanda que irei diagramando o material clínico que ofereço a continuação.

 

 

 

 

 

 

Trata-se de uma mulher que no momento de ter o pesadelo estava por atravessar um acontecimento fundamental. Este acontecimento mechia com sua nominação e a enfrentava a uma nova nominação: Senhora de...

Consumar este facto atingia os significados de trapaça, engano e fraude. Os ideais do matrimônio e o mandato materno a colocavam nessa direção.

O campo sintomático estava diagramado pelo que a analizante chamava ataques de descontrol, de pánico (tonturas, desmaios, sensação de despersonalização, pánico). Ter a dimensão de não habitar o lugar que ocupava ou ter o registro, em relação a seus atos, de estar assistindo um filme. Aí, onde não queria permanecer e permanecía, para não achar esse gozo insuportável, aparecia o sintoma: não poder achar um lugar em sua posição sexual, ataques que a deixavam sem nenhum lugar.

O real do sintoma causava lesões na pele, ficava ao descoberto a carne. Marcas de ter ido além da barreira, aquilo que tinha que ficar coberto aparecia sem sua cobertura, sem a pele.

A demanda ficava formulada em que se autorize que qualquer meio é válido para se alcançar um fim.

O pesadelo vem a questionar outra demanda que meche com seu ser fundamental: Ser cúmplice do fraude. O pesadelo alude a esse sem lugar em que fica na sua posição sexual. Em habitar nesse espaço de engano e trapaça.

 

Texto do pesadelo

Entrava num lugar muito confiadamente, o lugar era-me familiar, era similar a um laboratorio.

Continuava por um corredor e aí, no meio do corredor numa cama, faziam-me um papanicolao. Justamente nesse lugar, que eu achava desubicado.

Noutro momento entro a uma sala que era uma trampa, a pessoa ficava trancada.

Saia do edificio a um jardim, queria fugir. Tinha um muro que dividia o edificio da rua.

A policia me dizia que tinha uma marcha de taxistas e que a rua estava ocupada.

Queria sair, não podia, no laboratorio as pessoas ficavam presas. Fui enganada para entrar, agora não queria permanecer alí, desesperava-me. Acordei.

 

Associação

Lembro de um filme. Na primeira cena aparecem duas pessoas nuas jogadas na rua, sem nome. Uma delas é levada para o hospital, a outra morre e some.

No hospital fazem todo tipo de exames para descobrir que é que tem. Antes de morrer pronuncia o nome de uma droga que começa com F. Morre e o cadaver também some.

Um médico descobre que um neurocirurgião roubava pessoas anónimas para lhes tirar uma substância da espinha e injetala em outras para que pudessem andar.

O filme acaba quando descobrem ao neurocirurgião e matam-no.

Depois aparece uma mulher, a esposa daquele que realizava esses experimentos, que entrega uma pasta a outro médico com as fórmulas e diz que a finalidade era boa, mas que debe haver melhores meios para atingilas.

O pesadelo vai marcando os traços do opaco gozo do Outro. O lugar que parece familiar torna-se escuro, tramposo, sinistro. Aí na cama a extração duma substancia do seu orgão feminino. O lugar resulta desubicado.

A partir desse momento o pesadelo torna-se um labirinto de trampas e enganos.

Por último a desesperação e o despertar.

A lembrança que o pesadelo provoca, volta a reforçar o ser questionador e seu fraco gozo alí onde a extração duma substancia que começa com F, ja não do orgão feminino mas do mesmo sistema nervoso, produzindo a morte, é utilizada para o gozo do Outro. Ponto que não hei de desenvolver mas sim enunciar e tem a ver com o mais real do pai.

Me pergunto pelo acordar que o pesadelo produz? De que despertar se trata?

Jacques Lacan no seminario "Os quatro conceitos fundamentais da psicoanalise" refere-se a respeito do despertar do sono "Pai? acaso não ves que ardo?" do seguinte modo:

"No despertar? como não ver que possui um duplo sentido? que o acordar que nos volta a colocar numa realidade constituida e representada cumpre uma dupla função? O real deve ser procurado além do sonho; onde o sonho recubriu, envolveu, escondeu, atrás da falta de representação, da qual só há nele o que faz o papel de lugartenente. Esse real, mais que qualquer outro dirige nossas atividades."

O que acorda é o real que o pesadelo enmascara.

Sabemos que o sintoma guarda um pedaço de real, neste material clínico apresentado posso ir realizando uma comparação entre o real que o pesadelo esconde e o real que o sintoma apresenta. Ponto este que me permite verificar a hipótese lacaniana sobre o pesadelo como uma das máscaras do real.