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Uma lógica do luto depois de Lacan.
DREIZZEN Adriana
O homem sempre faz a experiência do seu desejo por algum traspassamento
do limite.
J. Lacan Seminário "A ética da psicanálise"
O título do trabalho pressupõe que caberia pensar uma lógica
do luto antes de Lacan e outra depois. Efetivamente, embora não
encontremos o que poderia se chamar estritamente de uma teoria do luto
lacaniana, acho que os desenvolvimentos que propõe em vários
dos seus seminários, alguns deles baseados no invento que apadrinhou,
o objeto a, proporcionam as coordenadas lógicas para avançar
na faixa da clínica do luto aberta por Freud.
Umas das vias para considerar é a que envolve a função
subjetivante do luto. Abrange a importância essencial outorgada
à elaboração da perda para que devena reinscrição
da falta que institui o sujeito.
Quando o trabalho de dor está impedido, é freqüente
que se manifestem diversos fenômenos clínicos como alucinações,
passagens ao ato, actings a repetição, o começo de
algum vício, fenômenos psicossomáticos, sombreados
habitualmente por um teor melancólico. O trabalho de elaboração
comporta rememoração, sonhos, atos falhos, vinculados com
a perda acontecida. Conjunto de formações do inconsciente
que denotam um considerável esforço de ligadura empreendido
pelo aparelho psíquico através do que se opera uma recomposição
significante, eficaz para localizar a falta, nomeá-la e propiciar
o reposicionamento do sujeito no fantasma.
No seminário VI, "O desejo e sua interpretação"
e no VII "A ética da psicanálise", coloco as primeiras
reflexões e desenvolvimentos de Lacan sobre a temática das
dores impedidas o detidas nos seus tempos de elaboração.
O desenlace trágico da vida dos jovens protagonistas na trama de
Hamlet e Antígona serve de argumento nos mencionados seminários
para considerar as conseqüências mortíferas da abolição
da possibilidade de dor.
No drama shakespereano, O pai do príncipe Hamlet é assassinado
por seu irmão Cláudio, quem imediatamente depois contrai
núpcias com sua cunhada e usurpa o reino. As exéquias do
rei morto recebem mínimas honras funerárias, é o
que ironicamente diz Hamlet com estes eloqüentes versos: "A
comida dos funerais serviu para o banquete da boda".
Na sua condição de filho, Hamlet vai se ver afeito de um
modo patético pela morte do pai e seus exíguos funerais.
Homicídio que o espectro do pai demanda vingar. Encruzilhada a
partir da qual o jovem Hamlet começa a efetuar uma seqüência
de ações não escolhidas - actings- que o afastam
da tarefa encomendada e o apartam do rumo dos seus desejos. Vitupera e
abandona a mulher amada, Ofélia; embarca-se em uma viagem com dois
picaretas que carregavam sua sentença de morte, mata por erro a
Polônio. Um conjunto de tropeços que vão se sucedendo
até desembocar na queda definitiva, sua própria morte, no
mesmo momento em que cumpre com o cometido que seu pai lhe encarregara:
dar morte a Cláudio. Ironia do destino, na qual recupera seu lugar
como rei herdeiro do trono, no mesmo momento em que a adaga do seu rival
o fere mortalmente.
No comentário da tragédia de Antígona, que Lacan
nos oferece no seminário VII, a ênfase recai sobre o valor
que guarda para a protagonista honrar os restos do seu irmão morto.
Seu desejo a leva a realizar os funerais de Polinizes, transgredindo a
arbitrária ordem de Creonte. Este tinha proibido realizar as exéquias
de Polinizes deixando o cadáver abandonado nas portas da cidade,
reduzido a carniça, pronto a ser devorado por aves de rapina.
O discurso de Antígona que transluz a imperiosidade de sepultar
seu irmão alude ao valor ético que concerne ao sobrevivente
de não ceder frente ao impedimento de dar sepultura ao corpo do
defunto. Reflete de um modo exemplar o caráter de objeto único
que tem um ser querido para aquele que o sobrevive, independente de qualquer
juízo de valor ou moral que possa se fazer sobre sua pessoa. No
caso desta tragédia, o caráter de exclusividade assenta,
como eloqüentemente o expressa a jovem, em que mortos seu pai e sua
mãe já no poderá ter outro irmão. Perdeu algo
que é insubstituível, e para que se inscreva seu passo pela
terra é absolutamente imprescindível cumprir os rituais
que a dor exige. Dar-lhe sepultura é um modo de nomeá-lo
readjudicando-lhe a identidade humana que todo mortal merece. É
o que possibilita aos familiares que a perda se inscreva como falta.
Como pensar o preço do sacrifício de entregar a vida que
ambos os jovens, Hamlet e Antígona, pagam um com a finalidade de
vingar o homicídio paterno e a outra para manter a aposta ética
de enterrar os restos de Polinizes? Que implicações clínicas
podemos deduzir para que uma perda significativa não recaia com
peso mortífero para um sujeito mas pelo contrário seja a
ocasião, a deliciosa oportunidade propiciatória a sua singular
nomeação como sujeito?
Entendemos que Lacan propõe uma operação particular
para a elaboração dos lutoss que consiste em fazer coincidir
o hiato aberto pela dor - isso que tinha chamado buraco no real - com
o hiato maior, o ponto x, a falta simbólica.
O descalabro fantasmático que toda dor comporta na estrutura reenvia
o sujeito a pôr à disposição a operação
instiuinte de inscrição da falta, já que uma carência
engendrada no tempo precedente serve para responder à carência
suscitada pelo tempo seguinte.
No seminário X, sobre "A angústia", Lacan retrabalha
a temática do luto mas agora desde o que já se perfila como
sua invenção: o objeto a. Esta contribuição
teórica, objeto nomeado por uma letra, permite pensar uma lógica
de aposta subjetiva frente a uma perda. Objeto a que se balanceia entre
"plus de gozo" e "objeto falta", mola teórica,
que permite percorrer as letras retidas num gozo devastador e recuperar
a posição do sujeito desejante. Ao finalizar este seminário,
Lacan propõe segundo funcione ou não o objeto a na estrutura
dois ciclos possíveis para o sujeito: um propiciador, chama-o de
dor-desejo, e outro que se conjuga nos pólos da mania-melancolia.
Esta hipótese contribui com dicas para pensar a respeito da constituição
do eu ideal e do narcisismo nesta última entidade clínica,
tema que não abordarei nesta ocasião.
A partir dos últimos seminários, particularmente do XX,
"Aún" [Ainda], Lacan propõe um trato com o gozo
que contempla a lógica do suplementar. Em se tratando da temática
da dor, podemos supor que uma lógica do suplementar, onde uma perda
real tem ocorrido, poderia dar conta de uma operação diferente
da aposta à mera substituição do objeto perdido.
No clássico texto freudiano "Luto e melancolia", os tempos
de dor concernem à possibilidade de reconhecimento da ausência
da amada, à elaboração da perda peça por peça
até sua culminação quando a libido desligada do objeto
perdido volta ao eu para investir novos objetos. Estes passos contém
uma lógica da substituiçã. A lógica do suplementar
contempla a aposta de que na recomposição significante que
incumbe à elaboração da perda, o sujeito encontre
as letras para alguma escritura própria. No ponto onde o sujeito
não é substituível, suplementar a perda abre o rumo
a um novo tratamento com a falta, com a falta de significante no Outro.
Via de entrada a um horizonte sublimatório.
Finalizarei trazendo um fragmento clínico de uma jovem mulher.
Faz vários anos, quando consultou, descrevia um estado de profunda
tristeza e desinteresse. Tinha perdido sua mãe repentinamente na
sua primeira infância a causa de um acidente automobilístico.
Lembra que frente à hecatombe familiar nem seus irmãos maiores,
nem seu pai tiveram "cuidado" em lhe explicar o acontecido.
Abruptamente passou do lugar de "filha menor e predileta de uma mãe
já adulta, ao de uma órfã de quem repentinamente
tinham tirado os cuidados". Acrescentavam-se aos sintomas descritos
previamente períodos de severas anorexias em momentos decisivos
da sua vida: pouco antes de se formar, previamente a partir a uma bolsa
de estudos no estrangeiro, antes de se casar. Espera, então, uma
maior atenção daqueles que a rodeavam, e também da
analista. Ela define estes episódios como que "sobrevém-lhe
a filha" fazendo alusão ao requerimento de "receber mais
cuidados", em relação ao momento em que sentiu que
os tinham retirado. Grande parte de sua análise transcorreu por
essa dor irreparável, transitando os tempos de elaboração
descritos previamente.
Acessou mais tarde à maternidade, anelada embora temida, podendo
deixar atrás o lugar de "filha". Mas na frente, no marco
da sua profissão iniciou pesquisas que a levaram a especializar-se
e escrever sobre temas referidos aos "cuidados", e modos de
assistência às crianças carentes.
Como propusemos acima o conceito de suplementar, permite pensar uma lógica
na qual uma dor não se resolve em uma substituição
infinita de objetos, mas que habilita as vias do desejo, propiciando um
ato criador no sujeito.
Bibliografía:
Freud, S: Duelo y Melancolía. Obras Completas.T ll. Ed. Biblioteca
Nueva , Madrid,1973.
Lacan, J: Seminarios: Vl "El deseo y su interpretación".
Versión traducida EFBA
Vll "La ética del psicoanálisis". Ed. Paidós,
Bs.As.,1990
X "La angustia". Versión traducida EFBA
XX "Aún". Ed. Paidós. Bs. As. 1972
Allouch, Jean: "Erótica del duelo en el tiempo de la muerte
seca". Ed. Edelp, 1995
Cancina, Pura: "El dolor de existir" Ed. Homo Sapiens, Rosario,
1992
Dreizzen, Adriana Bauab de: "Los tiempos del duelo". Ed. Homo
Sapiens, Rosario, 2000, en preparación
Hassoun, Jacques "La crueldad melancólica" Ed.Homo Sapiens,
Rosario, 1996
Nasio, Juan David: "El libro del dolor y del amor". Gedisa,
Barcelona, 1998
Vegh, Isidoro: "Hacia una clínica de lo real". Paidós,
Bs.As, 1998
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