A MEMORIA . UM TEMPO DO ESQUECIMENTO

DONZIS Liliana


*A memória é um tempo lógico que se escreve com a letra do esquecimento.

Em 1924 Sigmund Freud se surpreendia com uma técnica de escrita e memória que se produzia por meio da impressão de um traço sobre uma lâmina de celulóide colada a uma capa de cera, nela algo se gravava deixando uma marca que posteriormente podia apagar-se. Através do block maravilhoso Freud propôs que a memória se sustenta numa escrita e na descontinuidade do sistema perceptivo. Este último aspecto constitui: " A base da idéia do tempo ".(1). Escrita e descontinuidade sao a ligação entre o antes e o depois. Um traço deixou, no tempo passado do verbo, um traço que a posteriori se apagará. E, deste jeito que o tempo freudiano implica que o porvir se sedimenta de traços do passado que se atualizam por retroação em série.

A memória freudiana se tece no tear do esquecimento. O apagamento do traço implica um complexo processo cuja laçada oriunda é irredutível: o urverdrängt não ressurgirá jamais, esquecimento radical que a maneira de um imã atrai as novas impressões do sistema receptor cujo funcionamento é descontínuo. As impressões traçadas portarão essa escansão, esse silêncio , essa espera que podemos designar como corte e silêncio: descontinuidades do tempo perceptível. A laçada se constrói fiando e perdendo, o tecido que se perde pode chamar-se de esquecimento. Se a memória consegue recobrar em um cifrado e possível descifrado de traços é porque pagou sua dívida, isto é, o preço de um esquecimento. A memória produz no retorno do esquecimento por meio de uma ficção, em certas ocasiões disfarçada que vela e revela algo da verdade; fornece-se do esquecimento para falar com a língua da repressão. Entre o antes e o depois se tecerão as astúcias da estratégia do esquecimento. Escrita maravilhosa do real que permite guardar a fugacidade do instante no que se escrevem traços a priori incalculáveis. Essa memória que guarda o eficaz do esquecimento, falha mas não fracassa na sua tentativa de retorno, destitui a possibilidade de um regresso no tempo perfeito do verbo. Em outras palabras, a memória é a impossível certeza da lembrança. Lembra-se do esquecido fragmentos escolhidos do real.

Freud situa tempos instituintes do sujeito do inconsciente nos que a repressão delimita um antes e um depois das operações que na sexualidade infantil deixam como saldo a entrada na lógica que se denomina latência, tempo em souffrance do sujeito, na espera de um gozo sexual e em interrogação a ele. (2)

A partir do ensino de Lacan é possível efetuar outra leitura nos tempos de escrita do sujeito?. São do mesma estofa os tempos instituintes que se delinham na perspectiva do sujeito do inconsciente que o tempo do sujeito do ato?. E ainda do tempo ou dos tempos que concernem à borromeanização do cadenó, sujeito encadeado no nó?.

*A memória véu fantasmático de um tempo em ato .

Aprendemos com Lacan que a memória não é a miragem na qual podemos encontrar o passado senão que pelo contrário o esquecimento é um esbarrão da memória . Não há tinta que possa escreve-lo tudo, a castração concerne ao sujeito e ao Outro da linguagem. Tempo e escrita do sujeito se produzem na instantaneidade do ato. A memória é fugacidade, esse instante no que a lembrança não é senão fachada, o véu do fantasma, esse pouco de pudor que apenas nos permite seguir sonhando e que nos põe na rota do desejo e no despertar. Fugir com o significante dos tormentos do gozo para: " Com um escalpelo tímido mas com uma boa intenção lhe traçar uma marca, uma incisão à vida e nao só que a vida nos marque".(3)

"O estatuto do inconsciente é de muita fragilidade no plano ontico, é ético".(4). Concerne à castração do Outro da linguagem e situa ao sujeito entre dois mortes: a morte do ser vivente e a mortificação pelo significante. O esquecimento está do lado da segunda morte primeira em sentido lógico. A inscrição significante deixa traços indeléveis pois nele estão enlaçadas as letras da língua materna, a lalangue, essa incalculável fonte da memória da linguagem que na neurose faz corpo. É assim que opera por via da transmissão a língua que fura os percursos pulsionais fazendo da letra tempo fundente do parlêtre. Sofremos uma língua entre outras, alí repousa o literal do inconsciente. Não somente se trata do traço e seu apagamento, equipagem simbólico que porta o significante, senão assim mesmo do sintoma no que desponta o gozo fálico que permite esse assomo do real e em ocasiões esse savoir e faire avec son sinthome.

Mérito da psicanálise advertir que algo se fará ouvir embora seja mais tarde. Para a psicanálise a memória não é uma emblemática social, nem uma demanda da subjetividade da época depois de Auschwitz. Lacan nos lembrou no Seminário XIV: "O que se faz como análise da subjetividade da história contemporânea é história que chamo de totalitarismo".

Á memoria nao é o arquivo da história senão a letra que incide em cada um, um por um.

Se a história está vinculada ao logos, a memória o está à ética do inconsciente.

A memória é o risco de não saber, é a posta em jogo do ato que faz do discurso uma ética. Suas falhas que são de estrutura constituem escansões no decorrer. Concerne ao véu que põe esse manto pudoroso para que algo reste ignorado do real. A memória vela a angustia e, talvez encontremos ali uns dos motivos pelos quais a cultura reclama a Memória perante os infortúnios sociais do siglo XX. A palavra memória neste sentido tem se convertido em um conjuro do demoníaco do sexo e da morte levados até os últimos extremos da ignominia na Shoah e, nos genocídios produzidos em Latinoamerica nas últimas décadas, ainda que conhecemos que não foram os únicos.

O real do extermínio da Shoah não é representável. Há algo que não deixa de se escrever assim que tentemos passá-lo à letra queima, pois goza do traumático que como Freud nos ensinou em Mais-além do Princípio de Prazer demanda ligação, elaboração, Durcharbeiten, ¿Por que?.

Na singularidade do sujeito a repetição instala o igual e o diferente, o rasgo que faz ao um contável da série distingue a cada quem , enquanto que o reclamo da cultura é que nunca mais se repita.

Velar os mortos, os protagonistas de uma história sem protagonistas para voltar a dar-lhes o nome do qual foram despojados.

"Dizemos 'linguagem nazi', linguagem e no discurso, linguagem que se pretende sem limites…..converte o sujeito em descomposição humana, há algo que transpõe o fantasmático e invade o quotidiano do dizer de opacidade, porque quando se trata do extermínio tem se dissipado todo fantasma."(5).

A memória do extermínio, é a memória N.N , Noite e Névoa. Não nome apenas um número. Nos campos de concentração e extermínio no há lugar ao nome próprio eran designações como: farrapo, lixo, desfeito, nem sequer morto ou cadáver. Eufemismos do fenômeno do extermínio do discurso.(5).

A diferença com os genocídios latinoamericanos, por exemplo o acontecido na Argentina no chamado Processo, implicou levar o sujeito até as suas máximas possibilidades de subjetividade nos interrogatórios sob tortura, :" Delate!, Denúncie!,fale!".

Foram desaparecidos seus nomes e nossos NN transpõem a história contemporânea do totalitarismo.

A memória é lacunar e nos permite vestir de fantasma e esquecimento o real dos gritos da morte como limite da vida. Neste sentido a estrutura da memória comporta à letra em qualidade de veículo de una transmissão que faz da língua esse sedimento em que se escreve a história do sujeito enquanto arquivo de lalangue, sempre disposta para as peripécias no significante e transformar-se em sonho ou em pesadelo. Guardadora do tempo para velar a impudicícia e a loucura que poderia acarrear ouvir todos os gritos de todas as vozes, de todos os fuzilamentos, de todas as fogueiras com odores a carne humana incinerada. Junto a visão de todos os cabelos e os dentes de oro amontoados, junto aos bebes tirados dos seus familiares em istos ou em aqueles campos.

Memória, tempo atemporal que permite cortes e silêncios. Descontinuidade no percebido que permite ao sujeito tecer com a letra que erra o lapsos do esquecimento, pudor oxigenado da eficácia de uma memória que ao esquecer escreve.

O poeta argentino Juan Gelman escreveu. "Uma tinta que nao cessa de nao apagar o sangue é, a leve congoxa da razão ".

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Notas e bibliografias

*Liliana Donzis. email: donzis @ciudad.com.ar

Participante de los siguientes grupos de trabajo de la Convergencia:

-Shoah. Estructura y Memoria.

-Tiempo y estructura.

-Transmisión.

(1)S.Freud: El block Maravilloso. O.C. Ed. B. Nueva

(2)L.donzis.Psicoanálisi con niños. Ed.Homo Sapiens. Pág.193

(3).L.Donzis, Fragmento de un historial delicado.Inédito.Presentado en el Seminario "Carácter.¿Genio y Figura hasta la sepultura.?"EFBA 2000.

(4)J.Lacan Seminario XIV.La lógica del fantasma. Inédito. versión interna de la EFBA

(5)Perla Sneh y Juan carlos Cosaka. La shoah en el siglo. Ed Xavier Boveda.

(-) Analía Stepak. Lo real de la Historia. presentado en la Reunión Fundacional de la Convergencia. 1998.