MUTAÇÃO DO OUTRO E O DEVIR DA SUBJECTIVIDADE

CROIX Laurence


Um grande número de textos psicanalíticos evocam as consequências da mutação do Nome-do-Pai. A crise por estes denunciada seria estrutural, e no entanto, as abordagens agarram-se a um modelo conceptual como se de uma crise conjuntural se tratasse. Um conservadorismo ligado a uma ordem simbólica conhecida sob 2000 gloriosos anos de cristianismo, que nos interroga quanto às capacidades dos analistas, assim como de outros pensadores que ocupam as suas funções, de serem mais intérpretes da história do que pregadores de uma ideologia.

É certo que a prática da psicanálise confirma o mal-estar fundamental do sujeito numa sociedade da abundância, do absoluto, da performance, na linha directa dos trabalhos de A. Erhenberg. A clínica não deixa de nos interrogar sobre os meios de manter, e até reintegrar, a dimensão do desejo, o que deveria ser a única radicalidade da psicanálise. Tanto mais que os pacientes, dos dois sexos e de todas as idades, se queixam literalmente do seu fracasso em cumprir as normas totalitárias de um sistema socioeconómico que é psiquicamente invasor como nunca o foi antes.

Tomemos o paradigma dos sujeitos ditos "toxicómanos". É com efeito de forma exemplar que estes sujeitos, incarnam um disfuncionamento constitutivo da civilização consumista moderna. Neles o sujeito consumidor e o sujeito consumido coincidem. Ora, é o próprio sistema da oferta e da procura, a sua racionalidade jurídica e repressiva, e o poder absoluto da circulação das mercadorias e do dinheiro, que são a sua razão de ser.

Assim, as mulheres já não são as únicas a serem tocadas por uma sobrecarga de desafios, de demonstração de poder (de que algumas aliás sabem tirar óptimos proveitos), que numa época dada era para elas a condição para ter uma aparência de existência.

De uma forma mais geral a articulação entre o trabalho e a interacção, no sentido desenvolvido por Habermas, seria também susceptível de servir de base a um novo exame da capacidade do sujeito de desejar num Mundo Sem Limite. Para todos, as leis da linguagem encontram-se perpetuamente atacadas pela circulação do objecto. O sujeito torna-se, ele mesmo, num objecto consumível. Por exemplo, a reciclagem permanente que é exigida aos trabalhadores assalariados diz respeito à reciclagem do seu próprio ser, ou será por acaso que se usa a expressão "Reciclar-se"?

Também nos mais jovens, as "novas patologias" (hiperactivismo-violência-obesidade, etc) fazem a sua aparição, de forma maciça e epidémica, especificando-se, também elas, pela sua desmedida e visibilidade do exterior.

Então, será que aquilo que se joga "de fora", fora do inconsciente, pertence ao domínio da leitura psicanalítica?

Quando o Outro é o social

É a partir do "Discurso capitalista", que o Outro, tesouro dos significantes, parece levado a confundir-se com a realidade social, isto é, passa do "de dentro" ao "de fora": "O que se opera do discurso do mestre antigo ao do mestre moderno, a que chamamos capitalista, é uma modificação do lugar do saber". Lacan explica este fenómeno - quando o social se torna o campo do Outro -, a partir do momento em que o Nome-do-Pai é substituído pela função de "nomear a" por parte da mãe. A criança fica então reduzida a um estatuto de função, de projecto, de "jouir"(ter satisfação) enquanto destino.

É assim que nos apercebemos que a performance pode tornar-se, desde a mais tenra idade, na força e na violência, numa aparência de existência, ou pior ainda na única existência possível. É o que também não se pode deixar de observar, por exemplo, na atracção fanática das massas por manifestações desportivas: a procura de performance colectiva reforçada por um nacionalismo muito exacerbado, sobretudo quando comparado com a sua falta nos diferentes processos de mundialização.

Que subjectividade poderia, com efeito, subsistir se todo o sistema de representações, se fizesse através do objecto? Numerosos autores em relação à "errance" (vagabundagem), aos fenómenos psicossomáticos e outros "casos limite", notaram a quase ausência de formações do inconsciente, uma grande pobreza fantasmática, etc. Nós diríamos que estas "errances" (vagabundagens)do simbólico, se mantêm "fora de", são uma "J-errance" ("Eu-vagabungagem") humana, uma resposta à objectividade imposta. A perda, simbólica e imaginária, que atinge cada um de nós, revela bem as dificuldades comuns da incarnação do Outro, num sistema onde o discurso da ciência gostaria ocupar o lugar do Nome-do-Pai.

De uma outra ciência: a cientifização

A cientifização seria a possibilidade de designar o "l'en-pire" ("in-pério") da ciência na sua capacidade actual de destruir a "Kultur": ela separa-se da ciência e da sua vontade de saber, pela obstrução ao saber, ao conseguir impor-nos apenas Uma verdade. Da ideologia científica que era apenas discurso - que procurava objectivar o pensamento pela sua capacidade de dessubjectivar a humanidade- a cientifização é efectiva, quer do lado da investigação quer da prática, e será ainda necessário dar exemplos? Enfim, ela serve-se do cientismo e da sua mediatização, que se torna no seu instrumento de propaganda privilegiado. Este "tudo é possível" pós-moderno que ela promove, começou e foi tornado possível com efeito, não com Galileu ou Descartes (de acordo com a opção epistemológica escolhida), mas num tempo muito mais recente, nesse tempo onde as ciências se encontraram fundamentalmente ao serviço das aplicações da "pulsão" da morte, numa efervescência que lhe era desconhecida até então: o tempo do 3ª Reich.

As ciências não estão na origem da solução final mas puseram-se fácil e rapidamente ao seu serviço (quem poderia resistir a esta "pulsão"). A política nazi também reduziu consideravelmente a intenção da ciência de produzir uma sociedade de "superhomens", e de exterminar os outros. Quanto à homogeneidade daí esperada (que não é própria da ciência mas de toda a civilização), a sua passagem à prática não poderia dispensar a ciência. A ideologia científica encontrou pois neste momento da história a realização do "fantasma" (e nós bem sabemos, na clínica do sujeito, ao que a marca do contraste pode levar…). Esta história foi para o humano a descoberta de que o humano pode não ser mais um humano, que pode ser reduzido ao nada. Poder ser-se apenas um resíduo, é uma "herança que temos de partilhar" onde o real e a realidade são apenas um. Isto quer dizer que passámos do reino do objecto da sociedade industrial e capitalista, à potência-toda, pela coisificação do corpo humano. Uma mudança operou-se ao nível da divisão subjectiva do sujeito, e como nos lembrava Lacan no seu Encore, no lugar diferenciado de Deus enquanto Outro, na nevrose e na psicose: Se é graças à repetição da castração que na nevrose "acreditamos", com a ciência "acreditamos nela", e não temos outra escolha.

Da coisificação do próprio corpo e da resistência em Lacan

Com efeito, a ciência tornou-se puramente utilitarista, e foi isto que "perturbou" a ascensão da ciência: a ciência é socialmente interpelada pela "jouissance" (satisfação) do sujeito, sobretudo aí onde ela faz falta, isto é, no corpo. Ora, a cientifização conseguiu convencer-nos que nós somos apenas um organismo. Isto quer dizer que ela retoma uma confusão própria ao discurso da ciência sobre as noções de corpo e de organismo, apoiando-se na fetichização do corpo humano. Para que a individualidade orgânica se torne corpo, é necessário que o significante introduza o Um. Então, o verdadeiro corpo, o primeiro, diz Lacan, é a linguagem: o corpo do simbólico. O simbólico é um corpo enquanto é sistema de relações internas. É também por isso que a psicanálise não é um idealismo. É por o simbólico ser, de uma certa forma, um corpo, com a sua materialidade, que existe o que ele chama de objectividade do sujeito, o que faz com que, precisamente, a psicanálise guarde uma ligação com a ciência. "A linguagem é corpo, um corpo subtil é certo, mas ainda assim um corpo".

A ciência, que deseja passar de imagem a real, confronta-se com o Ser, fábrica de fabricação do significante, mas o organismo parece ser a máquina mais rentável da fábrica da morte.

Em conclusão, Lacan não só realizou grandes avanços conceptuais à teoria freudiana, como também nos permite uma leitura específica e indispensável do Mal-Estar da civilização própria da segunda metade do século XX.

Laurence Croix, Paris, Membro do Espace Analytique e de Psychanalyse Actuelle