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O INCONSCIENTE É UM SABER
COUTINHO JORGE Marco Antonio
DEVE-SE A LACAN O FATO de ter ressaltado um segmento nuclear da obra
de Freud, indicado já no título do escrito que, segundo
ele próprio afirma, inaugura seu ensino, "Função
e campo da fala e da linguagem em psicanálise" (1953). De
fato, tal segmento encontra sua formulação princeps no aforismo
lacaniano segundo o qual "o inconsciente é estruturado como
uma linguagem", por meio do qual Lacan trouxe a psicanálise
de volta a seu campo específico - o da linguagem -, do qual precisamente
os analistas pós-freudianos haviam se afastado. Lacan afirma aí
que "a descoberta de Freud é a do campo das incidências,
na natureza do homem, de suas relações com a ordem simbólica,
e do remontar de seu sentido às instâncias mais radicais
da simbolização no ser. Desconhecer isso é condenar
a descoberta ao esquecimento, a experiência à ruína"(1).
Este segmento da obra de Freud, passível de ser isolado em seus
extensos desenvolvimentos sobre a linguagem, foi chamado por Lacan de
simbólico.
Partindo da evidência, embora pouco focalizada até então,
de que a psicanálise opera através de um único meio,
a palavra do analisando, Lacan estabelece na obra de Freud a relação
ineludível entre as diversas formações do inconsciente
e a linguagem, através da qual elas necessariamente se manifestam.
A esse respeito, Lacan acentua a importância de três textos
freudianos iniciais - A interpretação dos sonhos (1900),
A psicopatologia da vida cotidiana (1901) e Os chistes e sua relação
com o inconsciente (1905) -, considerando-os como "canônicos
em matéria de inconsciente"(2). Esses três textos podem
ser considerados como três batidas de tambor que, tal como as três
sinetas do teatro, ou os três toc-toc-toc do sujeito à porta,
anunciam a descoberta do inconsciente(3).
Neles, o que Lacan destaca é o modo pelo qual o inconsciente opera,
como Freud já pudera salientar, seja produzindo condensações
e deslocamentos ao longo das palavras "sem levar em conta o significado
ou os limites acústicos das sílabas"(4), seja manifestando
"realmente uma preferência por palavras cujo som exprima diferentes
significados"(5). É digno de nota o fato de que a pesquisa
freudiana sobre o inconsciente o leva a abordar uma série de fenômenos
limítrofes: ora aqueles que até então haviam sido
relegados às abordagens obscurantistas, como os sonhos; ora aqueles
desprovidos de interesse para o discurso da ciência, como os chistes,
atos falhos, lapsos de linguagem e esquecimento de nomes; ora ainda aqueles
fenômenos incompreendidos pelo discurso médico, como os sintomas
neuróticos, as alucinações e delírios psicóticos
e as chamadas perversões sexuais.
Para Lacan, o discurso psicanalítico renovou a questão do
saber colocada por Descartes, pois "a análise veio nos anunciar
que há saber que não se sabe, um saber que se baseia no
significante como tal"(6). Considerando o inconsciente como um saber,
Lacan afirma que o ato falho é, com efeito, um ato bem-sucedido,
posto que através dele a verdade do sujeito se desvela ainda que
à revelia do eu: "O que Freud suporta como o inconsciente
supõe sempre um saber, e um saber falado. O mínimo que supõe
o fato de que o inconsciente possa ser interpretado, é que ele
seja redutível a um saber"(7). Um saber muito particular,
acrescentaria Lacan posteriormente, pois trata-se de um saber que funciona
sem mestre e se dá enquanto um saber verdadeiro. É o que
se pode ler na fórmula do discurso psicanalítico, único
discurso no qual o saber, S2, ocupa o lugar da verdade(8).
Nesse sentido, Jean-Jacques Moscovitz chama atenção para
o fato de que o termo alemão que designa o inconsciente, Unbewusste,
significa literalmente insabível(9) e acrescenta que o consciente
seria um saber que se sabe e o inconsciente um saber que não se
sabe. São muitas as passagens em que Lacan desenvolve esta que
é uma de suas idéias mais fundamentais, a de que o inconsciente
é um saber. No seminário Mais, ainda, por exemplo, ele afirma
que "o inconsciente é o testemunho de um saber, no que em
grande parte ele escapa ao ser falante"(10) e, nesse sentido, "se
o inconsciente nos ensinou alguma coisa, foi primeiro o seguinte: que
em alguma parte, no Outro, isso sabe"(11) . Em uma de suas "Conferências
norte-americanas", Lacan afirma igualmente que a descoberta do inconsciente
"é a descoberta de um tipo muito especializado de saber, intimamente
nodulado com o material da linguagem"(12). Repare-se que a mesma
concepção do inconsciente como um saber Outro surge na definição
lacaniana de determinados mecanismos fundamentais: o desconhecimento ativo
próprio ao recalcamento designa, para Lacan, um "não
querer saber de nada disso". (13)
Além disso, e mais essencialmente, é preciso acrescentar
que se Lacan ressalta que o inconsciente é um saber, trata-se de
um saber que vem preencher a falta de saber instintual - pois o instinto
animal é uma forma de saber inscrito no organismo vivo(14) -, falta
essa inerente ao sujeito humano desde seu nascimento: "o ser humano
manifestamente não tem nenhum saber instintual" e, nesse sentido,
pode-se afirmar que "só há o inconsciente para dar
corpo ao instinto"(15). Ainda em outra passagem de suas Conferências
norte-americanas, Lacan esclarece a questão da relação
entre o inconsciente e o instinto faltoso para o sujeito humano nos seguintes
termos: "[...] o saber constitui a substância fundamental daquilo
de que se trata no inconsciente. O inconsciente, nós imaginamos
que é alguma coisa como um instinto, mas isto não é
verdade. O instinto nos falta inteiramente, e a maneira pela qual reagimos
está ligada não a um instinto, mas a um certo saber veiculado
não tanto por palavras quanto pelo que eu chamo de significantes"(16).
Contudo, o saber inconsciente - o simbólico - apresenta um ponto
de não-saber - real - em torno do qual toda a estrutura orbita:
trata-se da diferença sexual que se recusa ao saber. O que significa
que o inconsciente é um saber que vem tentar preencher a falha
instintual, mas não a preenche completamente: em termos freudianos,
resta sempre a não-inscrição da diferença
sexual, o que Lacan traduziu como a falta do significante do Outro sexo
e escreveu com o matema S(A), considerado como uma verdadeira matriz da
estrutura:
Inconsciente estruturado como uma linguagem -> Saber -> Simbólico
-> A
Núcleo do inconsciente -> Não-saber instintual ->
Real -> S(A)
É nesse sentido que Freud menciona, desde seus Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade, as teorias sexuais infantis, que são
tentativas da criança de produzir um saber sobre o enigma da diferença
sexual, aquilo que precisamente não possui saber inscrito e escapa
à possibilidade de inscrição. Lembremos que o inconsciente
- missing link - representaria, assim, um saber que veio preencher a falha
deixada na espécie pela adoção da postura ereta e
a conseqüente perda do vínculo instintual preponderante nos
mamíferos, o olfato(17).
É bastante surpreendente averiguar que a novidade da idéia
lacaniana do inconsciente como um saber já se encontra, contudo,
enunciada de modo embrionário na obra de Freud, que utiliza esta
expressão numa passagem do primoroso livro sobre Os chistes e sua
relação com o inconsciente: "Sabemos de um sonho aquilo
que, via de regra, se parece a uma lembrança fragmentária
que nos ocorre depois de despertar. Tal lembrança aparece como
uma miscelânea de impressões sensoriais, principalmente visuais
mas também de outros tipos, que simula uma experiência e
à qual podem ser misturados processos de pensamento (o 'saber'
no sonho) e expressões de afeto".
Ainda em outra passagem de uma das conferências introdutórias
sobre os sonhos, Freud apóia sua argumentação sobre
a técnica de interpretação dos sonhos baseada nas
associações do sonhador na idéia de que o sonhador
sabe o que seu sonho significa, "apenas não sabe que sabe,
e, por esse motivo, pensa que não sabe"(18). O sujeito sabe
sem saber que sabe - e isso constitui o saber do psicanalista mais essencial,
o saber de que há sujeito do inconsciente, saber ao qual ele só
pode ter tido acesso através de uma experiência de análise
pessoal.
- LACAN, J., "Função e campo da fala e da linguagem
em psicanálise", in Escritos, p.276.
- LACAN, J., "A instância da letra no inconsciente ou a
razão desde Freud", in Escritos, p.526.
- Cf. DIDIER-WEILL, A., Os três tempos da lei, p.110: "[...]
a gênese do Verbo requer a geração de um ritmo de
três tempos."
- FREUD, S., A psicopatologia da vida cotidiana, AE, v.VI, p.13; ESB,
v.VI, p.23.
- FREUD, S., Os chistes e sua relação com o inconsciente,
AE, v.VIII, p.157; ESB, v.VIII, p.187.
- LACAN, J., O seminário, livro 20, p.129.
- LACAN, J., "Le sinthome", lição de 13/4/1976,
p.7.
- LACAN, J., Televisão, p.31.
- MOSCOVITZ, J.J., GRANCHER, P., Para que serve uma análise?
- Conversas com um psicanalista, p.12.
- LACAN, J., O seminário, livro 20, p.190.
- LACAN, J., op. cit., p.118.
- LACAN, J., "Conférences et entretiens dans des universités
nord-américaines", p.16.
- LACAN, J., O seminário, livro 20, p.9. O mecanismo da renegação
(Verleugnung) pôde ser igualmente aproximado, nessa mesma perspectiva,
da assertiva formulada por O. Mannoni: "Eu sei, mas mesmo assim..."
- LACAN, J., O seminário, livro 17, p.16.
- LACAN, J., R.S.I., lição de 15/4/1975.
- LACAN, J., "Conférences et entretiens dans des universités
nord-américaines", p.50.
- FREUD, S., Os chistes e sua relação com o inconsciente,
AE, v.VIII, p.153; ESB, v.VIII, p.184. O grifo é meu.
- FREUD, S., Conferências introdutórias sobre psicanálise,
AE, v.XV, p.92; ESB, v.XV, p.126.
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