O INCONSCIENTE ESTRUTURADO COMO UMA LINGUAGEM

CONCEVOY Liliane


A clínica da associação livre.

Com "o inconsciente estruturado como uma linguagem" Lacan revela que é a linguagem que organiza a existência humana.

A idéia que cada indivíduo tem de si mesmo depende de como e com que elementos ele realizou esta construção.

Do modo como ele tenha articulado o que escutou, entendeu e sentiu (operação de estrutura linguística) depende a cena que ele constroi, cena que passa a ser então constituinte.
É uma cena que tenta explicar e encontrar uma lógica para uma vivência. Quanto mais arcaica for a constituição desta cena na história do indivíduo, mais violenta será e se constituirá como se fosse um traumatismo real, com todas as condições, tal como pode sê-lo no real da psicose, sem que este elemento seja forcluido.
A análise consiste em revelar estas cenas que o analisando criou constituindo-se a si mesmo e que podem condensar-se em uma só frase, graças ao trabalho de metáfora e de metonímia que vai funcionar como significante. Isto quer dizer que a cena fica inscrita como uma frase com a estrutura da linguagem.
Estas cenas ou frases estruturantes vão atrair todos os elementos reais e imaginários do sistema e vão fixá-los de maneira esterereotipada impedindo-os de circular. São estas cenas-frases que vão se revelar na repetição da transferência.

Carlos - 10 anos- foi consultar por causa de um sintoma que o fazia sofrer e que o angustiava. Tinha medo de extraterrestres e de O.V.N.I.S. (objetos voadores não identificados). Apesar de saber que não existem... poderiam aparecer, o que o impedia de ver televisão, de ir ao cinema "pois se por acaso..."

Carlos escreveu dois textos. Quero compartilhar com vocês as reflexões que fiz a partir desses textos.
Carlos não encontrava nenhuma explicação para suas angústias, mas acreditava que podiam estar ligadas a algum fato do seu passado. Sabia que ao nascer tivera que ser hospitalizado por ter tido convulsões (sem febre e sem sintomatologia orgânica), mas não fazia nenhuma associação deste fato com suas angustias.
O que ele não sabia é que sua mãe, durante suas convulsões o cobria com um lençol porque não tolerava vê-lo e que seu pai, no dia do seu nascimento havia tido uma colite hemorrágica tendo que ser hospitalizado. Não sabia também que três dias depois do parto, sua mãe deixou o hospital para ir tratar do marido "que precisava dela".
Curioso fantasma de parto a dois.
Sabemos que o sintoma enquanto significante fala, mas não sabemos do que fala.

Nao creio que a dificuldade em fazer a associação seja uma característica da infância. Penso realmente que seja uma dificuldade do próprio analista. Ainda que nossa famosa regra da associação livre seja aceita como Regra técnica fundamental e condição para a interpretação, nem sempre é aplicada. Nos últimos decênios, há uma tendência dos analistas de se tornarem im-pacientes (eta!), de serem apressados, não esperando as associações livres do analisando, o que o leva a impor-lhes as suas próprias, correndo o risco de converter ou perverter a relação analítica em sugestão e então potencializar o sintoma "sobre"-significando-o.

A escuta das associações livres obriga o analista a rever as hipóteses que fez a respeito do paciente e exige, além disto, um tempo de escuta que, às vezes, contradiz a tendência atual de sessões curtas, em vez de sessões pontuadas.

As propostas de Lacan de que o analista fique no lugar de pequeno "a" e dirija a cura para provocar o movimento do desejo do analisando supõe duas condições : o "savoir faire" do analista para favorecer o trabalho da associação, e também o desejo do analista de escutar para que a representação do inconsciente possa vir à tona.

O analista precisa das associações para descobrir a cena construída que virou frase e que se cristalizou em sintoma.

Carlos organizava brigas de serpentes más contra serpentes boas, sendo que os ruídos eram a característica mais importante do jogo - os ruídos destas brigas sem diálogo nem argumento especial (mesmo se eu não me esquecia de perguntar). Ainda que se possa considerar como associações livres coisas de tipo diferente como gestos, atos, desenhos, ruídos, etc, as associações verbais têm, sem dvida alguma, uma função e um valor diferente porque é a narração ( como nos sonhos) que produz efeitos.

Já que as associações verbais não ocorriam espontaneamente no caso de Carlos, peço-lhe para imaginar sua história, desde seu nascimento, ou para inventá-la, se não consegue imaginá-la (proposta que se pode também fazer a adultos).
A cena que Carlos constroi-imagina é a seguinte : um recém-nascido (êle) está sozinho em seu berço no hospital, ligado a dois tubos de perfusão e as enfermeiras lhe dão injeções. Ele sente dor e tem medo porque não conhece ninguém..

L.C. : você não conhece ninguém ?
Carlos : é, porque as enfermeiras não são pessoas da minha família.
L.C. : serão como seres estranhos, extraterrestres que te dão medo?
Carlos : isso mesmo.
L.C. : então, podem ser seus extraterrestres e seus objetos voadores não identificados... Você não sabia que eram enfermeiras e que as injeções eram dadas para curá-lo, e não para atacá-lo.
Este sintoma desapareceu um tempo depois, quando o significante perdeu o valor, porque se transformou.

Aproximadamente dois anos mais tarde, Carlos começa a fazer, durante as sessões, algo que o diverte e o faz rir muito: reescrever palavras ou frases que deformava de uma maneira ou de outra . Ou mantinha a fonética e mudava a pontuação, ex : cth com vidu pru meu a niversariu (en francês escrevi : "jeux thyn vite amon ane y vert sert"). Ou então, mantinha a ortografia em algumas palavras, mas não o sentido "sem sentido", dizia êle. Ex : "as férias de nosso Xavier ! Este pedestre dentro de três gentes, com café por grelha o capitol.
Engraçado desgaste partições a cabra. Palhaço ? Nos Xavier os gatos o piano e o semáforo ! O quadro, trem se você pode ! Seu vento a Xavier medo, coisa, vem ?"

Transcrevo um só paragrafo.

Este texto, sem estrutura gramatical me parece interessante, porque nos coloca face à questão da tradução do inconsciente enquanto estruturado como linguagem. No texto encontramos uma sucessão de palavras sem sujeito, sem predicado e com muito poucos verbos. Mas.... ha sinais de pontuação. E se há algo que não se possa traduzir e que não é necessário traduzir são os sinais de pontuação.
O ponto é . em todas as línguas e a frase é frase, porque tem um ponto final. Poderíamos até desenhar uma frase : 1...........;......,..........?.

Em cada sessão, Carlos escreve algumas linhas ( quer dizer em transferência) e me pede para lê-las em voz alta. Enquanto eu leio seu texto estranho, com meu sotaque estrangeiro, êle morre de rir ( de seu texto, não do meu sotaque....ou do meu sotaque?)
Em resposta a isto, me aborreço, não acho nada de divertido, não entendo nada. Devo dizer que isto durou mais de um mês à razão de duas sessões por semana.

O fio condutor de sua vida desde seu nascimento foi "o estranho", e êle, o estranho (sinistro) que foi aos olhos de sua mãe que não suportava olhá-lo e que acabou por se tornar uma identidade.

Então eu lhe assinalo uma evidência : sua atração pelas coisas estranhas e a excitação que estas lhe provocam. Antes, as coisas estranhas lhe davam medo e agora o fazem rir. Ele concorda com minha interpretação, mas nada muda. Continua a escrever (cerca de uma página e meia), e a me fazer ler, intercalando às vêzes com outros temas. E ... esperavamos! Era eu quem esperava, .. era êle..? Era uma resistência de sua parte ou da minha ? Era um momento de construção ?

A força de ler e de reler, começo a impregnar-me de algo do seu texto e, sem dar-me conta, começo a modular minha voz. A entonação se faz, respeitando a pontuação. E escutando-me, tinha a impressão de falar com alguém. (Eis a tradução).

De repente, algo deste texto começa a divertir-me, a mim também e me faz rir, sem que eu saiba muito porque.
Passei um tempo emprestando-lhe minha voz ! Emprestando-a para este balbucio, porque a linguagem balbuciada não é nem cômoda nem evidente para o analista ; ainda que na realidade balbuciemos muito mais do que cremos. Insisto sobre o fato de que não é uma característica do psicanalista com crianças.

A linguagem enquanto expressão manifesta, pode provocar no analista a ilusão de entender o discurso de seu paciente como um código de linguagem compartilhado.

É somente neste momento, quando o texto me diverte a mim também, que a insistência repetitiva começa a decair. Carlos acaba de escrever, de me fazer reler e guarda seu texto.

Um fenônemo de escrita deste tipo nos faz pensar mais em psicose ou em despersonalização do que em uma criação literária.

Tem-se que notar que é a acústica, a entonação da frase, o som que assumem um lugar e se tornam significantes separados do significado. O sentido da escrita será dado pelo rítmo, porque é a censura que dá o sentido.

O que nos faz rir na leitura me faz pensar no chiste que deixa escutar o que é censurado.

E por outro lado, não poderia estar relacionado ao gozo fálico de sua mãe? Lembro-lhes que a mãe de Carlos não pode rir nem estar fascinada por seu bêbê que, apenas saído de seu ventre, no exterior de seu corpo, se tornou um estrangeiro inquietante. (em francês inquietante étrangeté : estranho). Precisava cobrí-lo com um lençol, para não ver as convulsões de seu inquietante estrangeiro.

Sua escrita estranha, de aparência louca, que toma minha voz, permitiu a Carlos construir-reconstruir-inventar uma cena que faltava e que, no entanto, não podia simbolizar. Uma cena que se pode escrever como uma frase na transferência, e que pode dar lugar a outra escrita, como foi o caso.

Um dia, Carlos chega na sessão e traz um texto que havia escrito num grupo de literatura, durante o período em que, nas sessões, escrevia o texto agramatical. Neste texto que resumo, êle conta a história de extraterrestres que desembarcam na terra para destruir tudo. "Eles metralham os sem defesa, como um caçador a sua presa." Eles vencem.

Logo escreve :
"Depois, a palavra FIN apareceu na tela. Os espectadores se levantaram de suas cadeiras. O guia que dirigia a visita do museu explicou-lhes "este era um tipo de distração muito difundido no mundo, no século XX. Chamavam-se filmes. O que vôces acabam de ver é um exemplo típico de filme de ficção-científica. O material que lhes permitiu ver o filme é uma tela de cinema muito bem conservada, e sua bobina um pouco envelhecida pelo tempo, esta igualmente em bom estado. Este objeto foi descoberto no dia 21 de julho de 2671, em pleno coração de Paris. É a última aquisição de nosso museu". Os visitantes se foram, voltando às suas casas situadas nas nuvens. E, no céu de Paris, se pode ver as astronaves dos turistas desaparecendo no crepúsculo, com o sol poente que seduz os sonhadores".

Esta linguagem gramatical pode corresponder à inscrição em uma cadeia significante que lhe dê um lugar na cadeia de gerações, é o que êle pode deixar escutar : seu novo texto.

Por enquanto, um novo interesse apareceu em sua vida. Trata-se das línguas estrangeiras !!!. Tem 15 anos e pensa dedicar-se mais tarde, a SER linguista.


FHIMM