O INCONSCIENTE ESTRUTURADO COMO UMA LINGUAGEM CONCEVOY Liliane A clínica da associação livre. Com "o inconsciente estruturado como uma linguagem" Lacan revela que é a linguagem que organiza a existência humana. A idéia que cada indivíduo tem de si mesmo depende de como e com que elementos ele realizou esta construção. Do modo como ele tenha articulado o que escutou, entendeu e sentiu (operação
de estrutura linguística) depende a cena que ele constroi, cena
que passa a ser então constituinte. Carlos - 10 anos- foi consultar por causa de um sintoma que o fazia sofrer e que o angustiava. Tinha medo de extraterrestres e de O.V.N.I.S. (objetos voadores não identificados). Apesar de saber que não existem... poderiam aparecer, o que o impedia de ver televisão, de ir ao cinema "pois se por acaso..." Carlos escreveu dois textos. Quero compartilhar com vocês as reflexões
que fiz a partir desses textos. Nao creio que a dificuldade em fazer a associação seja uma característica da infância. Penso realmente que seja uma dificuldade do próprio analista. Ainda que nossa famosa regra da associação livre seja aceita como Regra técnica fundamental e condição para a interpretação, nem sempre é aplicada. Nos últimos decênios, há uma tendência dos analistas de se tornarem im-pacientes (eta!), de serem apressados, não esperando as associações livres do analisando, o que o leva a impor-lhes as suas próprias, correndo o risco de converter ou perverter a relação analítica em sugestão e então potencializar o sintoma "sobre"-significando-o. A escuta das associações livres obriga o analista a rever as hipóteses que fez a respeito do paciente e exige, além disto, um tempo de escuta que, às vezes, contradiz a tendência atual de sessões curtas, em vez de sessões pontuadas. As propostas de Lacan de que o analista fique no lugar de pequeno "a" e dirija a cura para provocar o movimento do desejo do analisando supõe duas condições : o "savoir faire" do analista para favorecer o trabalho da associação, e também o desejo do analista de escutar para que a representação do inconsciente possa vir à tona. O analista precisa das associações para descobrir a cena construída que virou frase e que se cristalizou em sintoma. Carlos organizava brigas de serpentes más contra serpentes boas, sendo que os ruídos eram a característica mais importante do jogo - os ruídos destas brigas sem diálogo nem argumento especial (mesmo se eu não me esquecia de perguntar). Ainda que se possa considerar como associações livres coisas de tipo diferente como gestos, atos, desenhos, ruídos, etc, as associações verbais têm, sem dvida alguma, uma função e um valor diferente porque é a narração ( como nos sonhos) que produz efeitos. Já que as associações verbais não ocorriam
espontaneamente no caso de Carlos, peço-lhe para imaginar sua história,
desde seu nascimento, ou para inventá-la, se não consegue
imaginá-la (proposta que se pode também fazer a adultos).
L.C. : você não conhece ninguém ? Aproximadamente dois anos mais tarde, Carlos começa a fazer, durante
as sessões, algo que o diverte e o faz rir muito: reescrever palavras
ou frases que deformava de uma maneira ou de outra . Ou mantinha a fonética
e mudava a pontuação, ex : cth com vidu pru meu a niversariu
(en francês escrevi : "jeux thyn vite amon ane y vert sert").
Ou então, mantinha a ortografia em algumas palavras, mas não
o sentido "sem sentido", dizia êle. Ex : "as férias
de nosso Xavier ! Este pedestre dentro de três gentes, com café
por grelha o capitol. Transcrevo um só paragrafo. Este texto, sem estrutura gramatical me parece interessante, porque nos
coloca face à questão da tradução do inconsciente
enquanto estruturado como linguagem. No texto encontramos uma sucessão
de palavras sem sujeito, sem predicado e com muito poucos verbos. Mas....
ha sinais de pontuação. E se há algo que não
se possa traduzir e que não é necessário traduzir
são os sinais de pontuação. Em cada sessão, Carlos escreve algumas linhas ( quer dizer em
transferência) e me pede para lê-las em voz alta. Enquanto
eu leio seu texto estranho, com meu sotaque estrangeiro, êle morre
de rir ( de seu texto, não do meu sotaque....ou do meu sotaque?) O fio condutor de sua vida desde seu nascimento foi "o estranho", e êle, o estranho (sinistro) que foi aos olhos de sua mãe que não suportava olhá-lo e que acabou por se tornar uma identidade. Então eu lhe assinalo uma evidência : sua atração pelas coisas estranhas e a excitação que estas lhe provocam. Antes, as coisas estranhas lhe davam medo e agora o fazem rir. Ele concorda com minha interpretação, mas nada muda. Continua a escrever (cerca de uma página e meia), e a me fazer ler, intercalando às vêzes com outros temas. E ... esperavamos! Era eu quem esperava, .. era êle..? Era uma resistência de sua parte ou da minha ? Era um momento de construção ? A força de ler e de reler, começo a impregnar-me de algo do seu texto e, sem dar-me conta, começo a modular minha voz. A entonação se faz, respeitando a pontuação. E escutando-me, tinha a impressão de falar com alguém. (Eis a tradução). De repente, algo deste texto começa a divertir-me, a mim também
e me faz rir, sem que eu saiba muito porque. A linguagem enquanto expressão manifesta, pode provocar no analista a ilusão de entender o discurso de seu paciente como um código de linguagem compartilhado. É somente neste momento, quando o texto me diverte a mim também, que a insistência repetitiva começa a decair. Carlos acaba de escrever, de me fazer reler e guarda seu texto. Um fenônemo de escrita deste tipo nos faz pensar mais em psicose ou em despersonalização do que em uma criação literária. Tem-se que notar que é a acústica, a entonação da frase, o som que assumem um lugar e se tornam significantes separados do significado. O sentido da escrita será dado pelo rítmo, porque é a censura que dá o sentido. O que nos faz rir na leitura me faz pensar no chiste que deixa escutar o que é censurado. E por outro lado, não poderia estar relacionado ao gozo fálico de sua mãe? Lembro-lhes que a mãe de Carlos não pode rir nem estar fascinada por seu bêbê que, apenas saído de seu ventre, no exterior de seu corpo, se tornou um estrangeiro inquietante. (em francês inquietante étrangeté : estranho). Precisava cobrí-lo com um lençol, para não ver as convulsões de seu inquietante estrangeiro. Sua escrita estranha, de aparência louca, que toma minha voz, permitiu a Carlos construir-reconstruir-inventar uma cena que faltava e que, no entanto, não podia simbolizar. Uma cena que se pode escrever como uma frase na transferência, e que pode dar lugar a outra escrita, como foi o caso. Um dia, Carlos chega na sessão e traz um texto que havia escrito num grupo de literatura, durante o período em que, nas sessões, escrevia o texto agramatical. Neste texto que resumo, êle conta a história de extraterrestres que desembarcam na terra para destruir tudo. "Eles metralham os sem defesa, como um caçador a sua presa." Eles vencem. Logo escreve : Esta linguagem gramatical pode corresponder à inscrição em uma cadeia significante que lhe dê um lugar na cadeia de gerações, é o que êle pode deixar escutar : seu novo texto. Por enquanto, um novo interesse apareceu em sua vida. Trata-se das línguas estrangeiras !!!. Tem 15 anos e pensa dedicar-se mais tarde, a SER linguista.
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