TEMPO E INCONSCIENTE

Nympha Amaral


É na clínica psicanalítica que, a seu tempo, o inconsciente pode ser desvelado. Invenção do gênio de Freud, o dispositivo analítico cria, encobre e mostra o inconsciente em ato, como estrutura, o que inclui seus desdobramentos na constituição do sujeito. O inconsciente freudiano é caracterizado, quanto ao tempo, tanto pela lógica da atemporalidade quanto pela do só-depois, o que, ao contrário de tornar-se uma contradição de termos, é uma exigência. O Édipo, como estrutura, se não se produz em uma cronologia, desenrola-se, certamente, em uma sucessão de tempos, nos quais a lógica do só-depois vai intervir, fazendo com que o tempo final, o da produção de uma significação para o sujeito, que se pereniza no fantasma, coincida com o tempo mesmo de sua constituição.

A clínica com crianças, pode, entretanto, sem contradizê-la, colocar questões que, se não chegam a desafiar a lógica dos tempos do inconsciente, representam para o analista uma exigência extra de trabalho para poder produzir a teoria de sua praxis. Quando atendemos a crianças bem pequenas, em particular as crianças psicóticas (aí incluído o autismo), percebemos que o desencadeamento de um funcionamento se dá antes mesmo que um tempo suposto ao sujeito para responder ao Outro através de determinado modo de estruturação tenha transcorrido, minimamente, em uma seqüência lógica. É como se uma colabação de tempos tivesse advindo, fazendo do instante de olhar, do tempo de compreender e do momento de concluir um só tempo sincrônico, lançando, precipitando o sujeito em um funcionamento estrutural que aqui chamarei de precoce, como forma de traduzir um certo "eu já vi, eu já sei, só me resta lançar-me assim."

Procurarei, através de um breve exemplo clínico, apresentar a questão para, a seguir, tentar discuti-la.

Robin é um menino de 2 anos que chega ao serviço em que trabalho atendendo crianças autistas através de seu pediatra. Sua mãe o supunha vítima de uma cegueira e surdez intermitentes, dado que em alguns momentos, ela estava convencida de que o menino nada via ou escutava, mas em outros, lhe parecia que ele captava estímulos fornecidos por ela. Ela relata que este menino, aos quatro meses de idade, passeando na rua com ela e sua mãe, começa a chorar e, pelos próximos dez dias, à exceção das poucas horas em que dormia, chorava desesperado. Ao final deste prazo, durante o qual foram feitas diversas investigações médicas sobre o que poderia estar havendo com a criança, o menino silenciou, e , a partir de então, ficou alheio a tudo e a todos. A história desta criança, que aqui não vamos detalhar, e que nos chega através do atendimento psicanalítico no qual escutamos sua mãe, e que ocorre paralelo ao trabalho com a criança, revela que lhe fora reservado um lugar bastante específico na economia psíquica materna: o lugar de presente incestuoso de sua mãe para sua avó. As marcas paternas são aí radicalmente destituídas e excluídas, como que realmente inexistentes, o que se dá, na prática, acompanhado de um inevitável abandono paterno. Esta destituição se efetiva em prol de uma sustentação incestuosa da relação mãe-filha, do lugar de substituto do próprio pai, já falecido, ocupado pela mãe de Robin em sua família de origem (e destino), e que tem Robin como elemento de ligação e sustentação, a partir de seu nascimento, mas aparentemente, prometido desde sempre. Histórias como essas não são tão raras assim. Podem resultar em formas de funcionamento, no entanto, bastante diversas entre si, e que só venham a ser verificadas no momento lógico nomeado por Freud de "segunda onda " de investimento da libido. O que nos faz destacar este caso, entre outros de desencadeamento análogo, é o fato dele ilustrar claramente um desencadeamento que desconhece a lógica do só depois .

Uma questão insiste para o analista, ao longo dos atendimentos feitos tanto com a mãe quanto com o menino: como é possível que, aos quatro meses, um sujeito já tenha concluído o suficiente, a partir de seu encontro com o campo da linguagem, para que faça o ato de aderir a uma estruturação psicótica francamente desencadeada? O que faz com que estruturação e desencadeamento do quadro clínico sejam concomitantes? Como pensar na estruturação de um inconsciente em uma pontualidade sincrônica?

Quando acompanhamos o trabalho de Freud e Lacan sobre a paranóia, podemos supor uma seqüência temporal análoga à da neurose, no sentido de uma ressignificação a posteriori dos elementos da estrutura, que fazem com que a irrupção do sintoma, ou dos fenômenos elementares revelem que a estrutura do sujeito, só então, sempre tenha sido fundada, por exemplo, pelo recalque, ou pela foraclusão do Nome-do-Pai. O que dizer de uma estruturação que condensa seu momento originário com seu desencadeamento? Como pensar, em termos lógicos, o caráter da temporalidade destas estruturas?

Partiremos da hipótese de que há a possibilidade, para um sujeito, de que ele estruture o inconsciente, a partir de seu encontro com o Outro da linguagem, desconhecendo a dimensão diacrônica desta e sendo capturado/ lançando-se no campo do significante ao encontro de um significante em holófrase, que condensa todo o Campo do Outro em um único ponto. Sabemos que o sujeito do inconsciente se constitui na topologia intervalar, no deslizamento da cadeia significante entre S1 e S2. Pensamos que a dimensão vivida pelo sujeito, no campo da realidade, como tempo, decorre desta topologia de cadeia e da passagem entre seus pontos significantes de balizamento.

Porém, no caso do autismo e da psicose infantil, supomos uma outra possibilidade de constituição do sujeito, que resultaria de seu encontro bruto com os significantes holofraseados do outro, o que eliminaria a possibilidade do transcorrer de sua constituição em dois tempos lógicos, lançando-o, incontinenti, em um funcionamento desde já tributário da foraclusão do Nome-do-Pai, sem que o encontro com Um-pai tenha se dado num segundo tempo lógico.

Esta possibilidade coloca à margem as operações de alienação e separação, dado que o ser, que encontra a linguagem, neste caso o faz sem a chance de encontrar o sentido, ficando presa de um campo da linguagem-sem-produção-de-sentido e sem significação (porque impossibilitado, de saída, da operação da metáfora paterna). É do empréstimo de significantes e da suposição de que há sujeito, de saída colocadas pelo analista ao receber estas crianças, que se pode revelar um funcionamento mais além da pura ausência, que o autista grave parece encarnar. É a partir da colocação inicial do próprio analista em um lugar de uma alteridade outra que se fazem sentir os efeitos de descolamento parcial da criança de seu escafandro de silêncio, como se antes, a fala e o trânsito livre pelo campo da linguagem o ameaçasse de fazer-se afogar, como a um mergulhador sem seu aparato.

Estas crianças, longe do que registra a literatura psicanalítica mais corriqueira, respondem rapidamente a um trabalho. Como hipótese e possibilidade de sustentação de um tratamento, supomos um sujeito diante de nós e, porque não?, um sujeito ao inconsciente. O caráter do inconsciente resultante desta operação de constituição carece de ser estabelecido e elaborado; entretanto, sendo estas crianças sujeitas à transferência e, portanto, à intervenção analítica, cabe supor um inconsciente "a deriva", que o dispositivo clínico se mostra capaz de afetar.

Apresentamos aos colegas estas elaborações à guisa de hipótese, movidos pelo instigante desafio que a clínica com crianças, particularmente as psicóticas, é capaz de suscitar, e esperamos que sejam acolhidas e discutidas neste evento, ao qual emprestamos nosso entusiasmo.